sábado, 25 de junho de 2022

Ressurreição

Tenho textos desde 2000 neste blog. Há 22 anos! 9 anos antes antes de vir viver em Portugal. Importado para cá, pois estou no Blogger desde 2006. Não me lembrava. Lembro-me apenas que odiava pontos de exclamação. Hoje não ligo. 

Estive a ler algumas publicações antigas e recentes e gostei do que guardei aqui. Na verdade, este blog sempre foi um bloco de anotações, um backup para uma publicação mais cuidada. No futuro. Era futuro, à época. Hoje em dia, 8 anos após a última publicação, já não sei como marcar esse tempo.

Já não escrevo — mesmo em off — há bastante tempo. Pelo menos há 5 anos, eu acho. Dediquei-me integralmente à fotografia como profissão. Aprendizado, criar carreira, buscar clientes e trabalhar. Amanhã (hoje já) vou fotografar um casamento, à tarde, mas são 04h30 da madrugada e dei comigo aqui, saudoso, orgulhoso e com alguma expectativa sobre retornar para este local de rascunhos de escrita. Modifiquei fundos, cores, tudo para o mais básico possível para que sobre muito para o que interessa: as crônicas. 

Vamos ver...

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Olhos de vidro

Tarde amena. Do segundo andar do café vejo as folhas dos plátanos à altura dos olhos: duas janelas cravadas nas pedras, vidros que vão compondo os silêncios que vou consumindo muito lentamente. Isolam-me. A luz do sol doura as folhas do lado oeste das árvores, que dançam devagar conforme o vento lhes vai solicitando. Estou só, aqui em cima. Metade da minha mesa sob o poente, a outra jaz em uma sombra fabricada em pedras. Um frigorífico canta baixinho, ao toque da eletricidade que lhe deu vida. Olho semicerrado para as folhas. Balançam agora com vigor. Dizem-me algo. Entendo, mas não sei explicar. A explicação não existe. São elas. Vou estar assim, a ver através dos vidros. São os meus olhos desta tarde. Olhos tranquilos, atentos. Compreendem o vento e as folhas. Conversam em luz e sombra. Tudo em silêncio.

domingo, 1 de junho de 2014

A velhinha cheia de estrelas

Vi na televisão outro dia uma baiana de seus quase setenta anos. Dizia muitas vezes «graças a Deus»:

«Graças a Deus me levanto todo dia às cinco da manhã e ando duas horas até a esquina onde graças a Deus vendo os meus bolos e salgadinhos há muitos anos sem faltar um dia.»

Uma senhora muito humilde. Dizia do seu trabalho àquela idade fazendo uma singela carinha de satisfação. Trabalhava até às dez horas e depois ia para casa e passava o dia inteiro preparando as muitas qualidades de bolos e salgados que tentaria vender no dia seguinte. E assim todos os dias, há décadas.

Mora em um barraquinho de paredes azuis e janelas de madeira nuas e rotas. Chamou-me a atenção que as janelas não ficassem justas nos quadrados vazados nas paredes, como se fossem quadros tortos, mal dependurados em pregos. Uma casa pobre, mas asseada. Vivia com mais dois irmãos quase da mesma idade e ao menos mais uma sobrinha. Era a única que trabalhava, mantinha sozinha a família.

No final da entrevista, o seu último graças a Deus:

«Deus me dá a oportunidade de preparar cinco tipos de bolos e comprar alguns refrigerantes e poder levar ao asilo um sábado a cada quinze dias, graças a Deus. O asilo fica aqui perto.»

O asilo fica à distância de duas conduções e ela demora cerca de duas horas para chegar lá. Mas ela contou isso muito a contragosto e não disse que se tratava de caridade. Foi a sua irmã quem a denunciou:

«Há mais de vinte anos ela faz isso de graça. Fica preocupada com os velhinhos.»

A velhinha não tinha quase nada em casa. Na sala só havia cadeiras de madeira e uma televisão antiga e desligada, sabe-se lá se ainda funcionava. A cozinha era um cubículo com um fogão, uma mesa pequena e uma pia de cerca de um metro de comprimento. Todas as paredes estavam mal pintadas de um azul celeste igual ao dos tetos das igrejas barrocas. E a velhinha fazia a caridade de tirar um pouco do pouco dinheiro que tinha para preparar cinco bolos e comprar refrigerantes para os velhinhos do asilo...

Comovi-me imenso. E quando conto sobre essa velhinha ainda tenho de interromper a escrita para conter a comoção com um olhar distraído para as videiras do quintal. O vento morno balança as suas folhas. Dois pássaros trocam divergências ou amores ao longe. Um carro passa na estrada lá em baixo e o ronco do seu motor desmancha-se depois de fazer a curva no entroncamento. Mas a velhinha...

Senti orgulho dela ser brasileira, muito orgulho. Tantas dificuldades e mesmo assim ela mantém o seu senso de humanidade intacto. É gente. Digo eu. E creio que o dizem muitos velhinhos de um asilo qualquer perdido em um bairro muito pobre de barro batido do interior da Bahia. Encheu-me de esperança.

Minha velhinha, com todo respeito, agora é a minha vez: graças a Deus que existe gente assim como a senhora. Graças a Deus. Parabéns. Abraço-lhe daqui com imensa força. O seu coração por dentro deve ser da cor das paredes da sua casinha, só que cheio de estrelas. Nenhuma delas torta como as janelas da sua casa. Por dentro do seu coração é só beleza e exatidão. Estrelas e mais estrelas. Tantas. Parabéns.

terça-feira, 27 de maio de 2014

40 anos, eu?

E lá se foram 40 anos. Mentira. Não se foram. Tenho cada um deles aqui comigo, intactos. Sou eu. É impossível saber quem eu seria se me tivesse faltado um deles. Dizem que é difícil chegar aqui. Discordo. Faço 40 como se fizesse 30, é o mesmo. É a idade do meu espírito, sem tirar nem pôr. Interiormente, creio que estou no meu melhor: tenho já um bocado de silêncio acumulado. Sempre me senti muito a vontade no mundo. Mas antes era como se estivesse em casa; agora, como um viajante. E a aventura de quem viaja é maior. Digo estas coisas como se de ontem para hoje algo tivesse mudado. Não. Hoje apenas parei para escrever. Tudo foi aos poucos. Eu, um edifício que se foi construindo. Agora já consigo ver a paisagem mais ao longe, cresci. Como verei daqui há 20 anos? caso ainda... Vou ganhando datas: tenho 8 e estou passando 4 meses em Portugal, a ver lobos, raposas e criando salamandras em baldes plásticos; tenho 12 e estou apaixonado e ainda não sei; tenho 13 e começo a dedilhar um violão gaúcho Sonelli de cordas de aço; tenho 15 e toco guitarra elétrica em bandas de rock, punk, metal; tenho 16 e penduro pulseiras hippies e um pingente com o símbolo da paz naquele mesmo violão; tenho 20 e volto à Portugal, fico 6 meses e já não quero voltar para o Brasil mas volto; tenho 24 e nasce a minha filha linda, pequena deusa que me foi entregue na Terra; e tanto tanto mais, tanta sorte; tenho todos esses anos aqui e agora comigo. Sou eu, quem mais? este eu que vou sendo sem deixar jamais, nem por um segundo, de o ser. Até gosto bastante de mim. Pudera. Só me conheço a mim próprio assim, sendo o que sou. É isso. Tenho um'alma de 40 anos, sem tirar nem pôr. E estou muito bem, obrigado. Acho que nunca estive melhor. Ainda não posso dizer já cheguei a esta idade, e tu? será que chegas? Aliás, a minha avó aqui há tempos disse de um senhor da aldeia, que havia morrido àquele dia: tão novo, coitado! Perguntei, quantos anos? Ela, que tem 86, respondeu arregalada e pôs um dedo no ar e três exclamações no fim: 75!!! No dia eu ri, mas agora hei de concordar: é verdade, que novo. De fato, ele lá chegou! Eu é que ainda não sei se chego lá! Vamos ver.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Entremeada de primavera

Choveu, trovejou, caiu a temperatura, e então tive de ir importunar um casaquito que já estava a hibernar às avessas no porão junto com as outras roupas de frio. Ficou entre o espantado e o alegre, mas eu lhe disse calma. É passageiro. Já dão calor, e muito, para a semana. Já voltas para a escuridão muito em breve. Mas a chuva até que me caiu bem, apesar dos tênis e meias encharcados hoje a tarde em Arouca. Vai me cair bem também uma tacinha de vinho tinto maduro. Então vou cumpri-la, se me dão licença.

domingo, 18 de maio de 2014

Billie Holiday

Esta tarde fui para Trancoso a ouvir Billie Holiday. Mas houve uma dissonância qualquer entre o pleno sol ardente da primavera e o som nos meus ouvidos. Editei a aldeia em preto e branco na imaginação, a ver se ela ficava mais a condizer. Ficou. Desacelerei as passadas e segui em edição até o café. E quase que me esqueço de colorir a aldeia de novo. Mesmo depois de a Billie se ter calado. Foi por pouco.

Lâminas de sol nos estores

Vê o sol. Sol ameno. Luz dourada que atravessa os estores. Lâminas que não nos ferem a pele. Os teus pelos atentos em um arrepio quase imperceptível porém prolongado. Lâminas que revelam o pó que acordou antes de nós e paira em espera. Quer as janelas abertas. Não as vou abrir. Ainda não. É tão cedo. Deixemos o mundo lá fora. Que fique do outro lado toda aquela gente que corre. Não digas nada. Não te mexas. Olha apenas aquelas lâminas de sol. Do sol que te dou. Toma. São sete lâminas que atravessam persianas que não nos pertencem. Não te ferem a pele. Eu sei que não. Deixa-me estar mais um pouco assim, a ver a atenção dos teus pelos. Estão em pé. Nós? Nós não. Nem tão cedo.

sábado, 17 de maio de 2014

O cuco

Acordei e fui ver o mundo. Sentei-me na varanda antes de me pentear e mudar de roupa, pus-me a fumar e comecei a contar os diferentes cantos de pássaros, como sempre faço. Mas hoje não são só os quatro ou cinco cantos quotidianos. Consigo contar até sete! depois perco-me. Hoje há mais alegria. Espera. O cuco! Sempre que o ouço (cuco... cuco...) é do lado direito, e o seu canto vem desde o pinhal até aqui. Todo ano. Mas nunca o vi. Quanto evoca um cuco? muito. Desde o relógio das histórias infantis até o livro «Tudo o Que Eu Tenho Trago Comigo» — em alemão, bem mais bonito: «Atemschaukel» — da Herta Müller. Minha vida toda, até agora. Tão bonito. Não bem bonito, mas. Canta, cuco! canta. Que eu até me esqueci dos outros. E logo hoje que eram tantos.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Memórias instantâneas

Uma das consequências de estar há alguns anos longe da terra onde nasci e cresci é que às vezes surgem-me sensações ou cheiros ou memórias fortíssimas, minuciosamente detalhadas, instantâneas. Algumas dessas sensações acontecem espontaneamente; outras por causa de algum motivo externo e que na maioria das vezes não tem qualquer relação direta com o que me despertou. Somos tão estranhos. Onde ficam guardadas todas essas coisas? algumas que sequer percebemos que estavam sendo gravadas para o futuro? São partes de nós sobre as quais não temos controle e no entanto são mais nossas do que as outras, as que controlamos, por representarem o que há em nós de mais íntimo e relevante. Aquilo de que fomos sendo feitos. Morro e não descubro tudo sobre mim. E esta talvez seja a causa principal da nossa permanente inquietação. Ser humano é nunca se saber de todo.

domingo, 11 de maio de 2014

Estar ao sol, assim

Estar ao sol, assim, na esplanada do café. Isso é que é bom. Dourar o espírito. Vejo gente a passar. Nos carros ou a pé, passam todos. Fico eu a fiscalizar o andamento do mundo, a trocar impressões com os pardais que se debruçam dos plátanos. Não dizem coisa com coisa. Penso igual.

Descaso

Tempo de absoluta inatividade laboral. Semanas deslizantes. Apenas estar. Ser em passividade. Calor de dia, frio de noite. E um pouco de solidão. Mesmo ao sol. No entanto, leituras e releituras incessantes. Todas prazerosas. Como deixamos passar detalhes. E o quanto gostamos de determinadas linhas ao ponto delas se nos mostrarem ainda mais belas em sucessivas leituras. Mas há também um certo desinteresse que me veio visitar e foi ficando. Deixou-me em modo recolhimento. Tenho saído muito pouco. E se saio é para longe. Para ver se encontro comigo, mas só por acaso. Então leio.

terça-feira, 6 de maio de 2014

Falhanço da primavera

A tarde esteve indecisa sobre a primavera. O tempo todo. Ainda olhei pelas janelas do café de vez em quando mas não tomei nota de nenhuma reação. Bem que eu queria. Tinha ido pela estrada a pensar: quero escrever sobre a natureza. Mas ela permaneceu assim, afundada em neutralidade e às voltas com uns vapores que embaçavam os montes e sei lá. Voltei amuado. Tenho pena, mas hoje a primavera falhou. E eu com ela por estar à espera e nada. Parecia mesmo estar ali à espreita mas. Houve um sol opaco, enfim. Só para constar.

Vida após assassinato

Fui assaltado muitas vezes. Parei de contá-las lá pela décima, mas passou em muito. Já puseram armas de fogo em todos os meus lugares decentes possíveis. Nos indecentes não, e ainda bem. E facas, mas estas só quando eu era mais novo e um canivete bastava para a impressão. Sobrevivi. Alguns dos assaltantes não. Por acaso alguns deles eram novatos na anti-arte de roubar e ficavam no mesmo local dias seguidos exercendo o anti-ofício e aí a turma do pedaço ia até lá e dava cabo deles. Quando eu ficava sabendo também ia ao local para dizer o meu 'bem feito' e encomendar a alma do defunto pelos caminhos tortuosos do além.

Vi muitos mortos na rua. Lembro-me do primeiro, que tinha tomado com um tiro bem no meio da testa. Vi a face da morte. Mas ali, na face do morto mesmo. Não me chocou nem um pouco o furo da bala e o sangue esparramado pelo chão. O que me chocou a sério foi o aspecto de um corpo sem vida. Como é evidente! olha-se e tem-se a certeza: está morto, é impossível que não. Agora é apenas sangue, carne e ossos. Ou seja, restos de gente.

Da última vez que vi assassinados foram logo seis de uma vez. Tinha ido à emergência levar o meu irmão que estava de visita no Brasil e havia se cortado no pé com vidro. Enquanto ele levava pontos a polícia foi trazendo corpos em cadeiras de roda e despachava-os onde estávamos enquanto ia buscar mais. Foi nessa noite que vi pela primeira vez um crânio cortado ao meio. Como se tivesse sido dividido por serra elétrica e milimetricamente aberto: corte vertical sobre o nariz que dividiu uma metade dali para a esquerda e a outra para a direita. Viam-se fossas nasais, cérebro, dentes, boca, tudo em duas metades iguais, serradas, uma para lá e outra para cá, presas pela nuca e pescoço como uma laranja aberta mas presa atrás pela casca. E foram chegando mais. Seis corpos, seis bandidos mortos numa perseguição policial. Cada corpo uma morte visível diferente. Nunca mais me impressionei com nada depois do que vi nessa noite. Dessa vez não vi a face da morte, vi o corpo inteiro dela, por dentro e por fora. Carne, ossos: o homem. E um cheiro a sangue coagulado que volta e meia me vaza da memória e ainda sinto.

É triste. Triste porque sempre que via um morto abstraía a maldade, transformava-o apenas em «um homem» e pensava: o que é feito da história dele agora? Nasceu, teve infância, gostou de um doce específico, vestiu determinadas peças de roupa mas gostava mais das azuis, beijou uma menina pela primeira vez em tal época, foi a uma festa e paquerou outra que depois viu com um amigo, esteve em lugares que o marcaram e davam saudade, gostou mais de uma tia que da outra, mas é agora? Que miséria é a morte, que esgota tudo em um instante. Que nivela tudo pela medida do nada. E punha-me a pensar durante e horas depois de ver uma pessoa assassinada: que raio de coisa é esta, a vida? tão fácil de se extinguir.

sábado, 3 de maio de 2014

Concerto no casamento

Ontem, eu e o José Luiz fizemos concerto num casamento. Conheço os noivos há poucos dias. Não são daqui, vivem na Suíça, mas adotaram Alvarenga como segunda terra e portanto a aldeia tornou-se deles também. Que noivos simpáticos, e bonitos. Fui ao casamento a trabalho, mas fiquei muito contente de ver o casal feliz e senti-me feito um familiar a torcer pelos dois. É já visível a felicidade. Parece que há muito tempo, pois é serena — tenho certeza, eu é que só os vi agora. Hoje pensei muitas vezes neles. No sorriso e na simpatia fácil dos dois, na alegria simples de quem está a viver como quem cumpre um destino. E apesar da difícil gripe que há três dias me assola o corpo, isso tudo me fez imenso bem. Continuo gripado na mesma, talvez até pior depois do esforço de ontem, mas trouxe as vias do espírito leves e desobstruídas. Na alma não tenho febre. Tenho sol.

Ayrton Senna, há 20 anos

Faz vinte anos que eu estava indo para a casa de uma namorada. Para chegar até lá eu tinha de passar por dois bairros. Quando andava por uma rua do segundo, rua parte asfalto parte barro seco, longa, com poucas casas e dois bares espaçados, ouvi um grito: «Não acredito!» Fez-se silêncio no mundo. Uma senhora saiu de casa e sentou-se na calçada. Chorava aos soluços: «É muito injusto! Um rapaz tão bom!» Continuei o meu caminho, mas fiquei mais atento à minha volta. Suspeitei de crime e por precaução alinhei-me mais aos muros da direita.

Mais adiante, três homens sem camisa ao balcão de um botequim. Um deles com a mão na cabeça e a olhar para a rua sem me ver; o outro com os olhos vidrados na televisão e um copo americano distraído entre os dedos, torto, do qual entornava aos poucos fios de cerveja; o terceiro chorava, a cabeça encostada à coluna de madeira que sustentava uma proteção de zinco do botequim. Parei. E então vi na televisão daquele bar repetidas vezes o acidente do Ayrton Senna. Juntei meu pequeno e absorto silêncio ao silêncio de todo o país. Depois disparei os passos para chegar mais depressa na casa da namorada e poder acompanhar melhor o triste acontecimento.

Pelo caminho, gente chorando. Grupos de pessoas na frente das casas, braços cruzados, olhos vidrados no nada. Ninguém queria aceitar a injustiça sem tamanho que era aquela morte. Foi o que mais ouvi durante toda a caminhada: «É injusto, ele não merecia!»

Foi a primeira vez que vi o 'povo' chorando por causa de um ídolo. Nunca havia imaginado que uma comoção assim pudesse acontecer de fato. E então fiquei também muito triste. Ayrton Senna não merecia ter morrido naquele acidente. Nem em qualquer outro. Tão jovem, tanto sucesso, um rapaz humilde e com olhar e postura infantis e sossegadas. Foi injusto. Continua sendo. E não haverá quem me justifique uma morte no auge da carreira e da adoração unânime de um país.

Hoje vou novamente desde o bairro Jardim Esplanada até o Rancho Novo através daquela mesma rua do Jardim da Viga onde um ídolo nacional morreu. Mas vou me demorar mais um pouco ao lado daqueles homens sem camisa no botequim. Peço mais um copo e pego a garrafa de cerveja do balcão de madeira forrado em zinco. Deixo-me ali um pouco junto deles, mais uma vez, a olhar para o nada e ainda sem conseguir acreditar naquela estupidez de acidente. Foi injusto. Ainda é. E o mundo inteiro confirma.

terça-feira, 29 de abril de 2014

A brisa verde

Sempre por esta hora, uma brisa atravessa a aldeia e vem dar à varanda. Se tivesse cor seria verde. Tem cheiro de eucaliptos, pinheiros, capim. Sento-me no topo das escadarias e espero. Olhos fechados, nariz atento, pele passiva. Quem me dera ser minúsculo e poder sair de mim mesmo para ouvir o seu farfalhar nos pelos do meu braço esquerdo, que é por onde a brisa me chega primeiro. Ponho-me de pé num salto e olho para o céu estrelado: não sou grande... Do alto do azul-negro quem me poderia ver, ainda que a toda força dos olhos? O meu tamanho seria o da não existência. No mínimo um diminuto espaço vazio, sem passado. Ponho-me de volta no meu lugar, sento-me. Para ser no meu pouco. O meu lugar é o da natureza imediata, que não dá nomes a si mesma e no entanto revela-se no nome de todas as coisas. Como neste: brisa. Nome soprado. Que sobe pelo meu braço e senta-se em meu ombro. (som de mar em concha no meu ouvido esquerdo) Cala-te! — pareceu-me ouvir em duas ondas secas. Vou atendê-la. Pelo sim, pelo não. Calei-me. Nem foi preciso muito tempo. Mas só então pude ouvir algumas coisas que não sei dizer. As mais importantes, até agora.

domingo, 27 de abril de 2014

Jantar pizza

— Vais comer o quê? aquilo que está na geladeira, que nem eu?
— Aquilo o quê, vó?
— Aquilo que eu não gosto de dizer o nome…

Pizza. Minha avó não diz o nome por medo de se confundir e dizer «piça», que em Portugal é uma das alcunhas para pênis. Ela viveu mais de quarenta anos no Brasil, tem mistura sotaques, e do meio deles, da confusão da ‘pítza’ do Rio e da ‘piza’ de cá, pode sair assim um biláu ao engano.

Peguei duas, preparei-as e pus na mesa. Minha avó pega o ketchup e começa a luta, toda vez a mesma coisa:

— Porra, que esta porra não sai!
— Deixa que eu ponho os molhos, vó.
— Pera. É que estou sem força nos dedos...
(aperta com as duas mãos uma, duas, três vezes, e nada)
— Deixa, vó...
— Calma. Eu não sei como fazem isto assim tão difícil de apertar, cruz...
(vira, olha por baixo da embalagem, tenta mais uma vez)
— Posso?
— É, põe, põe. Bota cá do vermelho (ketchup ).
— Tem que ser pouco deste, vó, que isto é doce e a sua diabetes...
— Por isso que é bom, eu sabia. Põe logo. Isso. Agora o amarelo (mostarda).
— Molho de pimenta?
— Põe isso pra lá, não mete isso aqui na minha... nisto... nesta coisa que não digo o nome!
— Pizza...
— É. Isso.

E vai deixando as beiradas para dar ao Farruco, que já está sentado com a cabeça apontada para a minha avó. Joga a primeira beirada:

— Olha! viu só? coitado, está cheio de fome... Nem mastigou!
— Vó, a vasilha da comida dele está cheia. Ele não tem fome... É gulodice mesmo.
— Coitadinho... Toma, coisa feia. Come. Come mais um, toma.

No fim, o de sempre: café. Na verdade, o dela é cevada solúvel, a qual está de antemão na chávena, com adoçante, pronta e à espera da água quente que lhe vou despejar em cima. Bebe o 'café'. Depois se levanta (ai, corpo santo...) e o Farruco vem e posiciona-se atrás de mim, pronto para me seguir e acompanhar o meu cigarro na varanda. Enquanto isso, a minha mãe fazia requeijão caseiro e preparava pudim flan com calda de caramelo para mim. E fim. Só isso. Jantou-se bem, bebeu-se igual. Lá fora ainda chove.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Inimigos e adversários

Geralmente ficamos contentes com os elogios dos amigos ou simpatizantes. Mas o mais tocante elogio, se for sincero, é o que vem dos nossos adversários. Pois mesmo contrariados reconhecem o que tem de ser reconhecido e está além das desavenças: são honestos, apesar de. Por conseguinte, esses são os melhores adversários que se pode ter.

domingo, 20 de abril de 2014

Aleluia! Aleluia! Ele ressuscitou!

Jesus ressuscitou. Mais uma vez. Mas outra vez só para nós, já que é sempre a mesma ressurreição no eterno apenas atualizada no tempo. Os sinos tocam: badaladas rápidas, duplas, com pressa, conforme a alegria que o dia traz. A alegria vem sempre com afobação, com o desejo irrepreensível de ser comunicada o quanto antes. A alegria é sangue tenso nas veias, é o homem. O Compasso vai passar em todas as casas levando uma cruz já vazia e o menino Jesus para que os moradores O beijem. Raminhos ou flores são postos feito tapete para recebê-lo desde a porta da rua até a da entrada de casa. E assim que o Compasso passar pela porta, vão gritar: «Aleluia! Aleluia! Jesus ressuscitou!» Então quem O traz vai passar um paninho na imagem e a família O vai beijar. Em seguida, o compasso se despede e sai para ir bater em outra porta (pressa, pressa! alegria!). A aldeia está cheia de gente. É a tradição. Come-se bolo Pão-de-Ló ou Trigo Doce, come-se com a família e com os amigos, e é uma festa de mais convívio social que o Natal, que é já mais familiar e íntimo. É Páscoa. Mais uma vez. Na eternidade não. Ou seja: é. Foi só uma vez mas para sempre, só que sempre, todo ano, nesta data de alegria e aqui primavera. Até as flores desabrocharam para saudar o menino Jesus. Para que possam servir humildemente de tapete no caminho por onde o compasso há de pisar. Desejo a todos vocês uma santa e feliz Páscoa. Que haja muito chocolate e doces, mas que sejam o excedente de algo muito maior: o sagrado. Desde que o homem é homem sempre houve a procura por uma relação cada vez mais estreita com o que o transcende. A nossa época é exceção, é o contrário. Que o homem não deixe de ser homem jamais. Que descanse de o ser, mas que não se entregue. Ainda há tempo. No eterno já não. Saudemos o tempo! que é o fruto mais saboroso que a divindade nos ofereceu. Boa Páscoa!

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Morreu o Gabo: Gabriel García Márquez

Morreu o Gabo, o Gabriel García Márquez. É (no presente, sim), para mim, um autor muito querido e diria mesmo que essencial em determinada época. Li todos os seus livros, e algumas biografias, exceto o «Outono do Patriarca», que não consegui ler mais do que as primeiras cem páginas pois sempre o pegava quando estava à espera de outro livro de outro autor e, enfim, este chegava-me sempre na página 99 ou 100 daquele, cuja leitura eu então interrompia.

Quando li «Crônica de Uma Morte Anunciada», pensei: quero escrever os diálogos das personagens intervenientes assim, a meio da narrativa, soltos, como os diálogos nos aparecem de fato na memória quando vamos contar uma história a alguém. Aparecem assim, soltos, independentes do que vamos pensando, na voz de quem os disse e que surge no meio e durante a nossa, que é a voz do narrador. Mas para que nos entendam melhor arrumamos essas vozes da forma usual ou os suprimimos ou adaptamos ao contexto, mas nessa obra as personagens falam em primeira, apesar de serem terceiras pessoas. Li esse pequeno livro umas três ou mais vezes. Primeiro por começar de trás para a frente, ou seja, por abrir logo com a morte da personagem e depois é que se vai contando como se chegou ali, no fim, mas no fim que é o começo desse livro apesar de termos de chegar à última página, que nos livros usuais seria a primeira. Não é mero artifício, mas um artifício bem elaborado e surpreendente, sem deixar de ser simples. Mas não só por isso. O modo como acontece e é arrumada a narrativa agrada-me muito. Principalmente no que diz respeito às falas de quem é citado.

Inventando rapidinho um exemplo, seria coisa do tipo:

Dona Cremilda viu o corpo. Naquele dia ela tinha saído mais cedo do trabalho na casa dos Afonsos e estacou ali, a olhar para o corpo estirado no chão de barro duro e crestado da seca fora de época. Ela parou, e ninguém a conseguia mover dali. Mesmo depois de terem levado o corpo embora, ela ainda permaneceu no local até tarde da noite. Mas ninguém viu a que horas foi para casa. Estive com dona Cremilda. Ela contou-me, entre um descuido e outro de espanto, os olhos vidrados, o olhar para dentro «Nunca vi tanto sangue, assim, de dia. Sei que o sangue é vermelho mas o dele, debaixo daquele sol de fim de tarde, pareceu-me azul».

Coisa assim, mas melhor, claro. Parece simples, mas naquela época de pós-adolescência foi-me importante pra caramba. Lembro de estar a ler deitado e de fechar o livro e ir-me sentar à beira da janela, lívido da descoberta.

Deixo aqui minhas boas lembranças do escritor. É também da minha família, como o Vergílio Ferreira, o Lobo Antunes, a Clarice Lispector, o Jorge Luís Borges, o Camus e outros mais, enfim, dessa família que vamos arrumando através dos anos, através das leituras mais atentas que o de costume, através das tantas biografias e fotos que vamos vendo, através de uma ou outra frase ou parágrafo que vamos imitando até que sejam nossos. Sou-te grato, Gabo. Estou triste por saber que foste, tu também, em definitivo, para o reino da ficção. Mas vai em paz. Assim seja.

Enamoramentos e primavera

Abri «Os Enamoramentos» do Javier Marías e engoli com os olhos 100 páginas de uma só panelada sem me engasgar. Não houve ponto final nem término de capítulo que me freasse a gulodisse. Mas aí o sol resmungou uma violência qualquer diante da minha indiferença e encostou-se ao meu lado na esplanada do café. Fiz uma pausa — pensei na possibilidade de uma indigestão mnemônica com o enredo descendo-me assim todo de uma só vez e para mais com o sol bruto a lascar-me a telha. E foi aí que reparei no mundo (tinha-me esquecido) e ouvi o grito ardente da primavera. Chegou. Agora a sério, creio eu. Faz sol com força e não há canto da aldeia que não se tenha iluminado e aquecido. Os melros flertam a vontade e pipocam, negros, com seus bicos cor de laranja, sobre a relva; os pardais tecem teias invisíveis no ar do largo de um lado ao outro; brotam turistas dos fontanários; flores misturam-se, mestiçam-se pelos canteiros e eiras; e eu começo já a estar adiantado na estação e a sentir-me deslocado nos meus lugares de costume, conforme sempre me sinto no verão — que há de vir em breve. É assim. Tenho de ceder a aldeia para os de fora, afim de fomentar o turismo e o progresso de uma temporada. Depois retrocedemos todos, e retomo-a de volta. Por enquanto há vida a crescer, cheia de juventude, por todos os lados, e os bichos e a natureza nascentes descobrem que têm mais força do que imaginavam. Oxalá nós também, que já estamos aqui há tanto e às vezes nos esquecemos desse pormenor.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Sustos e latidos

O Farruco ouve além dos nossos ouvidos. Então volta e meia se invoca com alguns cães ao longe que só ele escuta e de repente começa a latir dentro de casa. Cada vez que ele late, assim, do nada, a minha avó leva um susto e diz:

— Porra pro cão, que até mete medo!

Lá para a terceira vez, depois do terceiro susto consecutivo:

— Mais um berro e ponho-te lá fora na varanda! Ai, espera.

(pensa...)

— Se eu pôr o cão lá fora aí é que ele não se cala mesmo...

(e constata...)

— Porra pro cão, qualquer dia manda na gente!

sábado, 12 de abril de 2014

Pólen

Esta é a época do pólen. Pó dourado que cobre tudo. Os carros. Casas. Esplanadas. Até o livro que deixei uns minutos em cima da mesa enquanto pedia meu café teve a sua fina camada, quase invisível. Passo a mão sobre a capa e sinto o ouro que vai caindo para o chão. Há gente que sofre imenso nesta época por causa da alergia que têm ao pólen. Espirros. Olhos lacrimejantes. Falta de ar. Ainda bem que eu não. Acho bonito a natureza estender as mãos tão longe e por todos os lados, como se o pólen fosse o seu espírito a pairar sobre a terra. Espírito da vida, extensão, abrangência. Quando varro o pó da capa deste livro faço carinhos no seu espírito. É dourado. Real. Esfrego o dedo indicador no polegar, sinto o pólen. Vejo-o bem de perto. Quantas flores e árvores, quantos pinheiros tão grandes vão nascer de ti?

quinta-feira, 10 de abril de 2014

A conchinha

Havia uma concha escondida na areia da praia, quieta, guardando o som do mar. Mas tinha uma pontinha branca de fora, úmida, descuidada. Ele fingiu não ver. Olhou de lado, feito mau-olhado. Mas o olhar era bom. O mar é tão grande... Cumpre o teu destino, conchinha. Cumpre. Quem sou eu para te apanhar? E esperou pelo pôr do sol.

Horário de verão em Portugal

Nesta época distancio-me mais do Brasil. Com o horário de verão daqui (e o término do daí) agora são quatro horas a mais em Portugal. Durante o ano há períodos de diferença mais amena, de duas horas, três, e há esta violência das quatro. Se são 20 horas no Brasil, aqui já vou na meia-noite. E quando por lá chegam finalmente na meia-noite, aqui já vou nas 4 horas da manhã. Ou seja, não vou. Já fui dormir. Estarei sempre adiantado no saber noticiário. Saberei primeiro de coisas que no Brasil ainda não vão saber por estarem todos ainda a dormir. Mas, curiosamente, esta é a época do ano (a mais longa) em que menos procuro saber das notícias brasileiras ou do que vai acontecendo daquele lado. Como se por causa das circunstâncias, por culpa do fuso horário, como se fosse algo natural como uma hibernação — só que ao contrário, pois aqui vamos na primavera e logo será verão, que é a época menos virtual do ano: estarão todos a curtir a pele ao sol ou sentados nas esplanadas dos cafés e bares até mais tarde, já que, por aqui, com esse horário, o sol vai se pôr quase às 22 horas. Não sei o que fazem com a noite. Metem-lhe a austeridade do horário de verão em cima e ela encolhe-se toda. E eu, claro, estico-me ao sol na esplanada do café. Com livros na retina e dali para dentro. E vejo cores alegres nas pessoas. E braços alvos, nus, tarados pela luz solar que se abriu sobre todos nós. E tudo isso é bom.

sábado, 5 de abril de 2014

Somos feitos do que passou

O grande problema do ser humano não é o futuro, tempo talvez com que mais se preocupe. É o passado. O que se fez e não se pode fazer mais; o que não se fez e deveria ou poderia ter sido feito; ou as possibilidades que só são descobertas mais tarde, quando já não o são. Lidar com o passado, seja bom ou mal. É para isso que o ser humano vive. O destino, que só o é quando já é tarde e mesmo assim nunca deixa de sê-lo. É disso de que somos feitos: de passado. E vamos sendo. Para que a cada dia mais se o tenha. Para que se possa olhar para trás e ter o que ver e ser sempre novo, ainda que não o seja. Nós somos feitos de histórias inalteráveis. Do que nos vai passando.

E se…

«E se...» Frase tão pequena, e no entanto sem fim. A pior já dita pelo ser humano: por significar tanto, mas querer dizer agir tão pouco. Frase infinita.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Sol de um lado

— Ui! está sol aqui deste lado da casa, vó!
— Eu sei. Quando vi fui até praí a correr. Sem bengala.

Pago taxas pelo dinheiro que empresto

O meu pai não guardava dinheiro em bancos. Dizia que era absurdo ter de pagar para usar o próprio dinheiro; dinheiro que, se o pusesse lá, seria na verdade um empréstimo com o qual os bancos enriqueceriam. Dizia que o banco é que nos deveria pagar, e muito bem pago, por esse serviço de enriquecimento de uma só mão que lhes fornecíamos. Qual o sentido em ter de pagar taxas pelo dinheiro que emprestamos para que os bancos ganhem com ele em aplicações? Estava certo, penso eu. Mas não ajo assim. Enriqueço muita gente, desde bancos até governos, e não tenho meios eficazes para contestar o mau uso que fazem da fortuna que lhes vou emprestando. Sou bonzinho, depois perco de vista o que investi. Mas a minha gentileza sempre foi muito bem cobrada. E se atraso no ser gentil pago extras também. Sou capitalista, acredito no capitalismo. Mas será que o modo usual de se ser capitalista está correto? Ou será que eu só financio o capitalismo dos outros, que é o que eu queria para mim?

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Solidão descartável

A solidão é uma escolha, mas nunca escolhas a solidão. Não para que seja o teu lugar quotidiano. Esta é sempre difícil de romper. Escolhe a multidão. Pois desde a multidão é mais fácil: quando for preciso, ou se houver necessidade, basta que te recolhas de improviso. Assim terás solidão na tua medida. Solidão descartável. Que não te fará mal nem vai querer tomar posse de ti. A solidão, se mal acostumada, quer sempre tudo o que houver. Talvez até mais um pouco. Então tem cuidado.