quarta-feira, 8 de setembro de 2010

As fotografias são memórias em silêncio

Abro um saco repleto de fotografias como quem dá o primeiro passo para dentro de um túnel do tempo. Paredes apertadas, escuras (não vejo a luz, enganaram-me os relatos de quase-morte) e eu não sinto cheiro algum.
 
1353513Seguro a primeira foto e percebo que o meu passado não me pesa nada: lembranças leves de fim de tarde numa casa colorida pelo sol quase a se pôr, móveis cor de cerejeira, tapetes com desenhos sem lógica em tons de vinho, branco e amarelo escuro, umas sandálias apertadas e meias brancas até os joelhos. Olho-me de cima a baixo e revejo o desenho da roupa bege com detalhes em castanho (lembra-me sempre o uniforme de um piloto de avião, excepto pela cor) e reparo na minha expressão desgastada por ter de fazer pose para sair bem no retrato: cabelo húmido para o lado, bochechas cheias de raiva e os olhos apertados de inquietação e ansiedade, os braços pendentes ao lado do corpo (meus brinquedos a espera e eu ali a ser posterizado numa impaciência suprema sem sentido algum), tudo a refletir com perfeição os anos oitenta: uma espécie de fidelidade estética generalizada que nunca mais ocorreu nas décadas posteriores.
 
Uma vida assim resumida e um futuro a ser destilado no conta-gotas dos anos (as fotografias uns pedaços de silêncio que não me pesam quase nada, eu já disse?). Expressões faciais, objetos, luzes, imagens de um mutismo absoluto a sustentarem uma autoridade mnemónica incontestável (os retratos nos fazem calar como as pessoas que só de por os olhos em nós silenciam-nos, já repararam?).
 
Não tenho lágrimas nos olhos, pus um sorriso de lado no rosto. Cai-me melhor, acredito. Impossível deixar o rosto mais conforme aquele tempo senão com esse sorriso de lado, pois este mesmo sorriso equivale àquela expressão enfastiada da fotografia, a mesma coisa por dentro alguns minutos depois já pelo chão da sala, o tapete mundos cheios de lógica e os brinquedos todos a conversarem se eu virava os olhos em outra direção, que eu sei muito bem que isso acontece e estão sempre a fingir.
 
(se eu jogasse o retrato no ar era capaz de cair feito pena de passarinho, horas até chegar ao chão em namoricos com o vento, duvida?)
 
A minha mãe a querer enfiar-me camarões goela abaixo enquanto eu reclamava que não comia bichos. Os bifes não eram bichos visto o meu pai ter um talho e bicho nenhum no frigorífico que eu olhava muito bem lá para dentro. Aquele nevoeiro toda vez que ele abria a câmara onde as carnes baloiçavam feito sinos mudos (no inverno o nevoeiro todo lá fora e eu negando-me a acreditar que o meu pai havia esquecido as portas do frigorífico abertas durante a madrugada, coitadas das pessoas).
 
Esta única foto e isto tudo lá dentro. Aqui fora apenas o sorriso de lado e os meus olhos a atravessarem o tempo e o espaço. Nem uma única palavra jogou-se pelos meus lábios abaixo, podem acreditar. Ainda bem, pois gosto muito deste título que arrumei: as fotografias são memórias em silêncio (um espetáculo, diga lá?) e não o estragaria por nada deste mundo, apesar de ter a certeza de que neste exato momento os meus brinquedos estão na casa onde cresci a conversarem demasiado devido a minha ausência.

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