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sábado, 5 de abril de 2014

Somos feitos do que passou

O grande problema do ser humano não é o futuro, tempo talvez com que mais se preocupe. É o passado. O que se fez e não se pode fazer mais; o que não se fez e deveria ou poderia ter sido feito; ou as possibilidades que só são descobertas mais tarde, quando já não o são. Lidar com o passado, seja bom ou mal. É para isso que o ser humano vive. O destino, que só o é quando já é tarde e mesmo assim nunca deixa de sê-lo. É disso de que somos feitos: de passado. E vamos sendo. Para que a cada dia mais se o tenha. Para que se possa olhar para trás e ter o que ver e ser sempre novo, ainda que não o seja. Nós somos feitos de histórias inalteráveis. Do que nos vai passando.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Solidão descartável

A solidão é uma escolha, mas nunca escolhas a solidão. Não para que seja o teu lugar quotidiano. Esta é sempre difícil de romper. Escolhe a multidão. Pois desde a multidão é mais fácil: quando for preciso, ou se houver necessidade, basta que te recolhas de improviso. Assim terás solidão na tua medida. Solidão descartável. Que não te fará mal nem vai querer tomar posse de ti. A solidão, se mal acostumada, quer sempre tudo o que houver. Talvez até mais um pouco. Então tem cuidado.

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Pedras de muros de gelo

Silêncio absoluto. Vazios. O frio faz das pedras dos muros pedras de gelo. Pedras absolutas. Antigas. Sem recordações próprias, mas com a memória da nossa passagem, confusa, entremeada ao musgo que as chuvas esqueceram nelas. Memórias agarradas, ali, com medo do sol. Memórias curtas, decerto. Pedras lisas demais. Culpa do vento. E a minha imagem, depois de milhões de outras imagens já esquecidas, a passar por elas. Som de folhas ainda quebradiças, apesar de úmidas. Meus pés. Pés tolos. Repisam as mesmas folhas até que já não estalem mais e sejam apenas uma pasta de cores de outono. Todas as pedras dos caminhos por onde passei já me esqueceram. Quem és? dizem em absurda imobilidade. Então digo não sei. Minto. Passo de novo. De novo. Minto sempre. Mas dentro de mim, em inviolável intimidade, respondo vezes sem fim: sou Sísifo.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Mulher desconhecida

Nem Iemanjá,
vindo sobre as ondas do mar
com seu sorriso de estelas.

Nem todo o sal
que brilha na trama do seu véu
de linhas de horizonte.

Nem seu cortejo de conchas,
batuque de pedras brancas,
rastro de espuma, viração; nada.

Nem o que pudesse imaginar
revelar-se-ia tão belo como
a tua silhueta subindo a praia
depois de um banho de mar.

(tuas mãos torcendo a água do cabelo
gotas eriçando a pele queimada de sol
meus olhos presos no visível do teu corpo
o teu invisível na minha imaginação...)

Não, mulher desconhecida.
Deste ou de outro mundo.
Inventado ou não. Nada.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Dois dias, dois anos

Ontem, 2013; hoje, 2014. Dois dias, dois anos. E tudo isto visto desde a imensidão do universo? A duração de um segundo? um milésimo dele? O que aconteceu de ontem para hoje nos outros planetas do nosso sistema solar? se nem as minúsculas explosões coloridas por entre as nuvens e o azul das comemorações do nosso planeta foram presenciadas, já que não há por lá ninguém para nos assistir? O homem convenciona a existência e dá a ela seu significado. Por vezes, coletivo; noutras, particular; mas sempre a marcar o tempo e a sua passagem sobre a Terra. Para que haja o depois de nós e assim possamos estar também no futuro de quem conta o que foi nosso e no entanto permaneceu. Para não nos perdermos durante a existência fugaz que nos calhou. Para que haja unidade. Por isso, inventamos o mundo. Para que coubéssemos dentro dele. Aqui dentro. E só.

domingo, 15 de dezembro de 2013

Tardes de domingo

O domingo é o dia que me calhou para estar só. É bom. Ver a tarde em silêncio, a luz dourada que vai incendiando a paisagem, ouvir a música dos pássaros. O Farruco deitado sobre a faixa de sol que se estendeu no chão e que se vai arrastando, brincando com o passar do tempo. Ponho-me na varanda a ver o mundo, ouço-o. E conta-me imenso. Fala-me aos olhos numa linguagem que às vezes ouso traduzir. Não é bem uma tradução. É já o que eu entendi com os sentidos e depois se tornou meu e talvez não queria dizer exatamente o que a natureza me contou. Mas ainda assim foi o que ela mo revelou. Difícil dizer com ela. E ainda assim ouso dizer. Para tanto, eu tenho que tentar me fundir com a paisagem. Antes das palavras. Esquecer de mim como se eu nunca tivesse sido. Ser também por completo natureza. E só depois me lembrar. Depois, quando já nos separamos e eu e a natureza somos novamente duas maneiras diferentes de dizer, quase inconciliáveis. Como agora. Na minha vez, a vez das palavras.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

A construção do homem

Todos estes pensamentos inconclusos, sem razão aparente, sem que se perceba sequer o motivo de terem aparecido. Dúvidas? para ser humano, sim. O que um simples ato ou frase desencadeiam, imagina. E quão absurda é a vida, às vezes. E às vezes também inútil, cega de sentido, um tateio aqui e ali sem chegar a lugar nenhum apenas por não se ter decidido aonde. Quem já não o sentiu? tantas palavras gastas em determinada direção para serem desditas algumas curvas depois. Ou no choque com uma pedra bruta, que nos fere a língua afiada em argumentação. Um novo vocabulário para o destino que se definiu. Sim, é necessária a sua invenção. E que prazer uma mesma palavra para um novo sentido que lhe incumbimos. Um novo significado, virgem de decepção, de som puro como o primeiro choro do homem que acabou de nascer. Dói, mas ainda não o sabemos. Por isso, ainda não é bem dor. É o instinto a avisar que no futuro será mais. É carne. Só o saber é que nos fere a sério. E a doença incurável do homem, o pensamento. Essa lâmina que é diferente de todas as outras porque é afiada com o próprio uso. E que nos aflige a todos, cada um em sua profundidade. Cada qual com a sua ferida. Mas quanto mais cicatrizes, ainda assim, melhor. É sinal de que um homem vai sendo feito. E no entanto o homem é o único animal que ao ficar pronto deixa de o ser. Para sempre. Que mistério.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

O teu nome é homem

Os sapatos no chão (som abafado), tocando instrumentos: folhas secas com afinação em chuva menor, chuva fina, que já se foi mas insiste que não. O frio ressona nos muros de pedras. Basta um toque para que desperte e corra da ponta dos dedos para todo o corpo, em solavancos: arrepio de surpresa, engano?, pois o corpo recebe-o aquecido, coberto, como se fosse imune às temperaturas que não lhe convém. Por isso, o frio estremece de estranhamento e sai à procura do que lhe falta esfriar. Corre cada milímetro em intensa velocidade, até que os braços cruzem-se ao peito e o andamento seja outro. Acelera, homem frágil. Cobre-te de artifícios. Veste-te da tua inteligência e pequenez diante dos elementos. De que te adianta resmungar os ruídos da tua impotência? Como conseguiste sobreviver pelos séculos? sorte, necessidade? Não toques nas pedras, respeita-as; toma cuidado com a afinação das folhas, não pises na canção sem motivo. Ouve a resposta: não foi necessidade. Olha para o céu estrelado, diminui a tua importância e grita: foi sorte. Os planetas são incontáveis e nenhum deles ouviu falar de ti. O teu nome no resto do universo é silêncio. Impossibilidade. O teu nome é homem.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

A felicidade é como um flash

A felicidade é como a luz do flash, que nos ilumina a face num instante e faz visível a nossa individualidade no meio da dos outros, do ruído que há à nossa volta. O retrato de um lapso no habitual. No entanto, são essas as fotografias que nós guardamos no álbum da memória. É com elas que fazemos a nossa história, porque o real é demais para nós e precisamos de o resumir no que houve de importante para que ele se nos faça legível em nós mesmos. Um flash. E então enchemo-nos de expectativa para saber se ficamos bem ou não, porque é impossível manter a pose constantemente. Impossível. Como esta. A que estou fazendo agora. E que já me vai cansando apesar de.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

A nossa crônica no Livro da Vida

Somos feitos de quê? de sonhos? pedras? Se soubéssemos seria tudo mais fácil. Como ler um livro. Palavras, frases, o que for preciso, está ali. Dizem as Escrituras que um anjo vai anotando o que vamos sendo no Livro da Vida. Provavelmente, um romance épico. Deve haver também capítulos de poesia onde estão escritas a vida de lirismo dos santos e heróis; e frases de sofrimento intenso e êxtase, como lhes convém para que o sejam. O virar do dia é uma nova página que se vai rabiscando letra a letra. E a nossa concentração é tão pouca que não conseguimos perceber a palavra inteira que vamos desenhando, a frase, o parágrafo, pois a nossa vista prende-se sempre na pequenez de uma parte e toma-a com a falsa grandeza de um todo que ainda não existe. Vai, escreve. Mas revisa diariamente o texto que te foi saindo pelos dedos do teu espírito, esse cronista. Prepara-te para quando finalmente o teu editor celeste, aquele anjo, te for publicar na eternidade. É o teu livro que vais escrevendo. Quem sabe se eu, na tua escritura, serei uma personagem qualquer de relevo? E se não, tanto faz, que eu saiba fazer de mim um trabalho original, uma crônica com alguma graça que faça rir ao anjo do Livro da Vida e nos facilite a amizade. É sempre bom ter cunhas. Quem dirá no céu. Nunca se sabe.

Aniversário da minha avó e outras eternidades

Hoje a minha avó faz 86 anos. Quanto tempo, Maria do Céu. Lembro-me de outro dia, quando faleceu um senhor de Alvarenga, conhecido da minha avó, e ela disse:
— Tão novo, coitado. Morreu.
— Era novo, vó?
— Era! 75 anos!
E, de fato, para quem tem 86... Qual a medida correta da juventude? A corporal não é de se fiar, todos sabem, mas é por esta que geralmente medidos também a idade do espírito, o qual, por definição, é imortal. E ser imortal é ser jovem para sempre. Mas então descemos do eterno para vir contar os anos de um corpo descartável nesta terra e vida cheios de defeitos. Minha culpa. Eu, Adão reciclado em milênios por condições adversas. Eu, que já não me lembro de ter errado quando tudo começou. Eu, que comecei a desfiar a história da humanidade naquela manhã de sol e segui desfiando pela tarde fresca à sombra de uma árvore. Desde então tudo tem fim, pois há de cair a noite sobre todo aquele que viu o dia nascer. Para que o dia que um dia começou se cumpra por inteiro e sare essa ferida na eternidade que é o tempo. Até lá, sob sol ou chuva, fazemos bem em comemorar cada novo ano de vida. Menos um ano, que seja. Tanto faz. Afinal, somos tão jovens quando dizemos, desde o coração, 'para sempre'. Se calhar, há de ser.

sábado, 2 de novembro de 2013

O mal do homem

De todos os males a que um homem está sujeito, o pior deles talvez seja o de não estar apaixonado. É como andar às voltas consigo próprio no labirinto infindável que se vai cavando durante a vida. Vida, ao contrário, a qual sabe-se ter fim. Não ter a quem mostrar em pormenor a biografia que se vai vivendo em pensamentos, atos e omissões? que triste. O ser humano precisa de cúmplices. Precisa mostrar que está vivo e que vai fazendo coisas durante esse viver. Precisa também de testemunhas, pois nem ele próprio acredita em algumas coisas que pensa e faz. Às vezes não acredita nem em si mesmo. E põe-se a pensar: será? E parece mesmo verdade que não.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Halloween, Santos e Finados

Depois da farra das almas menos afortunadas no Dia das Bruxas, vem o Dia de Todos os Santos. É hoje. Dá-se parabéns no céu, há a lembrança das santas memórias terrestres em volta da fogueira do sol e deve-se beber do vinho de sangue diretamente da Videira Celeste. Mas aqui na terra o cemitério já foi arrumado e as campas estão limpas e floridas, pois amanhã é o dia dos mortos mais afortunados, Dia de Finados. Em religião é assim, há espaço para todos e cada um tem a festa que merece de acordo com a classe que lhe calhou na eternidade. O que há de comum a todos eles — e até Deus se fez carne para o cumprir — é a vida terrestre que se viveu. Não somos convidados de nenhuma dessas festas e delas não participamos. São festividades do nosso futuro e ainda não sabemos a fantasia que havemos de vestir. Não decidimos, e a vida que vamos vivendo é o tempo dessa escolha. Vamos experimentando as roupas que nos vão servindo até o dia em que não houver mais tempo para a prova. Só então vamos para a fila de uma dessas farras. Por enquanto, não. Ficamos em casa, em frente ao espelho, a ver se estamos bem e a combinar desde as cuecas aos acessórios. Oxalá que nunca satisfeitos.

Da verdade

— Onde está a Verdade?
— Não sabes?
— Não.
— Debaixo da terra.

terça-feira, 20 de agosto de 2013

O Ator - I

O ator terminou o espetáculo e as luzes se apagaram. Ele manteve os olhos fechados e esteve ali por muito tempo antes de descer do palco. Sempre estendia ao máximo esse interstício. Era o seu momento mais importante, quando ele realmente não estava interpretando.

O Filósofo e sua sede - II

Pela segunda vez, o filósofo perdeu-se no deserto. Mas desta levava consigo apenas um único e imenso volume de Platão. Obras completas. Não aguentou até o segundo dia, logo no primeiro ele já trocava o livro por um único copo d'água. «E faço muito bem!» — ele pensou, já que ele queria manter ainda por muito tempo a possibilidade de continuar a sentir uma das sedes, por mais que matasse a outra.

O filósofo e sua sede - I

Um filósofo perdeu-se no deserto com uma mala cheia de livros de Platão. Já no segundo dia trocava-os todos por um único copo d'água. «E faço muito bem!», ele pensou — já que essa era a única sede que ele podia saciar completamente.