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domingo, 27 de abril de 2014

Jantar pizza

— Vais comer o quê? aquilo que está na geladeira, que nem eu?
— Aquilo o quê, vó?
— Aquilo que eu não gosto de dizer o nome…

Pizza. Minha avó não diz o nome por medo de se confundir e dizer «piça», que em Portugal é uma das alcunhas para pênis. Ela viveu mais de quarenta anos no Brasil, tem mistura sotaques, e do meio deles, da confusão da ‘pítza’ do Rio e da ‘piza’ de cá, pode sair assim um biláu ao engano.

Peguei duas, preparei-as e pus na mesa. Minha avó pega o ketchup e começa a luta, toda vez a mesma coisa:

— Porra, que esta porra não sai!
— Deixa que eu ponho os molhos, vó.
— Pera. É que estou sem força nos dedos...
(aperta com as duas mãos uma, duas, três vezes, e nada)
— Deixa, vó...
— Calma. Eu não sei como fazem isto assim tão difícil de apertar, cruz...
(vira, olha por baixo da embalagem, tenta mais uma vez)
— Posso?
— É, põe, põe. Bota cá do vermelho (ketchup ).
— Tem que ser pouco deste, vó, que isto é doce e a sua diabetes...
— Por isso que é bom, eu sabia. Põe logo. Isso. Agora o amarelo (mostarda).
— Molho de pimenta?
— Põe isso pra lá, não mete isso aqui na minha... nisto... nesta coisa que não digo o nome!
— Pizza...
— É. Isso.

E vai deixando as beiradas para dar ao Farruco, que já está sentado com a cabeça apontada para a minha avó. Joga a primeira beirada:

— Olha! viu só? coitado, está cheio de fome... Nem mastigou!
— Vó, a vasilha da comida dele está cheia. Ele não tem fome... É gulodice mesmo.
— Coitadinho... Toma, coisa feia. Come. Come mais um, toma.

No fim, o de sempre: café. Na verdade, o dela é cevada solúvel, a qual está de antemão na chávena, com adoçante, pronta e à espera da água quente que lhe vou despejar em cima. Bebe o 'café'. Depois se levanta (ai, corpo santo...) e o Farruco vem e posiciona-se atrás de mim, pronto para me seguir e acompanhar o meu cigarro na varanda. Enquanto isso, a minha mãe fazia requeijão caseiro e preparava pudim flan com calda de caramelo para mim. E fim. Só isso. Jantou-se bem, bebeu-se igual. Lá fora ainda chove.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Sustos e latidos

O Farruco ouve além dos nossos ouvidos. Então volta e meia se invoca com alguns cães ao longe que só ele escuta e de repente começa a latir dentro de casa. Cada vez que ele late, assim, do nada, a minha avó leva um susto e diz:

— Porra pro cão, que até mete medo!

Lá para a terceira vez, depois do terceiro susto consecutivo:

— Mais um berro e ponho-te lá fora na varanda! Ai, espera.

(pensa...)

— Se eu pôr o cão lá fora aí é que ele não se cala mesmo...

(e constata...)

— Porra pro cão, qualquer dia manda na gente!

terça-feira, 1 de abril de 2014

Ventania. E um cãozinho tolo que só ele.

Venta muito. Vento que assobia alto de encontro às portas e janelas. Estou na cozinha. A lareira apagou-se. Foi natural. A lenha deu o que tinha de dar, mas perto do fim engoliu para si as poucas chamas que restavam e ficou a abrasá-las ainda por muito tempo. Depois, enfim, cinzas. A cozinha tem duas portas: uma para a frente e outra para o quintal dos fundos. Estamos no alto, acima da estrada e na beira e a meio caminho de um elevado: e a casa vai levando fortes tapas de vento no lado esquerdo da sua cara de alvenaria, na face que dá para o quintal. Estive um tempinho em silêncio, a ouvir tudo isso. E sem querer imaginei a casa sendo arrancada e capotando de lado vale abaixo e adiante. Giros e giros até ser pequena lá onde a vista não alcança. E o Farruco, coitado, latindo desesperado, correndo atrás. Pus-me logo a rir. Cãozinho tão doido, meu Deus. Até em uma imaginaçãozinha tola destas ele faz graça.

domingo, 16 de março de 2014

O imenso São Bernardo

Um São Bernardo vem pela rua, em passos lentos. Meus olhos encontraram nele imenso desânimo. Os cães, em desacordo comigo, tomando o desânimo por arrogância, lançaram-lhe em cima ondas de latidos. O São Bernardo não demonstra qualquer alteração, como se não existissem mais outros cães no mundo senão há muito tempo atrás. Ele vem. Não alterou em nada o seu passo lento, mais lento ainda por causa do seu tamanho. Cansaço animal. Adianto-me até a varanda, vejo-o de cima. Enquanto os cães vizinhos estão no máximo da sua revolta, chamo-lhe. Uma, duas, três vezes. O cão levanta muito lentamente a sua cabeça imensa e olha para mim com a boca aberta e a língua em pêndulo. Ele olha, e são quatro segundos desse olhar. Olheiras vermelhas. Escorrer-lhe pelo focinho o que lhe resta da sua vontade já liquefeita. Não me ouve. Imagino que só vê a minha mímica (anda! segue teu o caminho! anda) e tanto lhe faz. Então estico o braço e aponto o dedo para adiante. Ele baixa o olhar, e esse baixar são dois segundos. Custa-lhe seguir, mas o que importa?, nem pensa nisso. Ele apenas vai. Segue, curvado, como se lhe custasse tanto cada passo. A cabeça baixa; segue indiferente aos latidos, que a esta hora já são os de toda a aldeia. Algumas pessoas já mostraram meias faces por entre as cortinas. Mantenho o meu dedo em riste, feito seta cujo alvo é o silêncio de todos os cães do mundo. Ele vai: lento. Tem a cabeça baixa. Leva dependurado no focinho um único fio de vontade líquida, a balançar. Vira em outra rua e desce sobre pedras de encontro à estrada. O alvo então é meu, conquistei-o, venci. Toda a gente fecha as cortinas e dá tudo pelo fim. Fico ainda um pouco na varanda. Tenho nos ouvidos o prêmio do silêncio animal. Os outros cães entraram. Ele, enfim, desapareceu. Mas tenho ainda aquele virar lento de cabeça na memória, aquela indiferença cansada e já parte de um corpo que não se importa com tudo o mais. Com tudo o que já deixou de existir e que agora é só um pouco que não chega, mas que importa? Esqueçam. Olho desde dentro do meu invisível para aquele olhar. Um olhar que poderia ter sido o meu, mas que hoje foi o de um imenso São Bernardo. Um imenso São Bernardo que no entanto já passou.

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Farruco, um cão conservador.

O Farruco é um cão muito conservador, odeia gatos. Sem ecumenismos ou coisa assim. Outro dia quase fatiou o gato lerdo do vizinho. O raio do gato preto e velho é burro demais. Todo noite senta-se em frente à porta da cozinha, na varanda, e põe-se a ver estrelas ou ratos nas nuvens, não sei, e todo dia o Farruco dá-lhe sebo nas canelas. É uma rotina tão escarchada que antes que eu abra a porta, mas já na iminência de, o Farruco fica na posição de tiro e mal abro uma fresta ele sai em modo espoleta varanda e escadas abaixo, na certeza de trincar o bichano lesado por já saber da exata localização costumeira do invasor. De cada 10 vezes que abro a porta em oito o Farruco faz o gato voar por cima do muro. E safa-se nas outras duas por estar a chegar ou a sair e ser assim fácil dar a meia-volta. É burro mesmo, o gato. E meio lerdo nas fugas, parece que está cheio de ar, inflado, e tem dificuldades com a gravidade, inclusiva com a da situação. Tem cara de espantado, olhar de louco, e o pelo preto todo estufado. Mas há duas noites eu tive de intervir, pois os dois se enroscaram de tal modo no chão que eu só via um tufo preto a girar a bufar a rosnar. Tive de pôr ordem na bicharada. Berrei «Farruco!» e os dois pararam imediatamente e ficaram a olhar para mim. Ainda tive de ter a gentileza de dizer para o gato: estás à espera de quê? foge infeliz! E só aí ele se foi, lutando com a gravidade, inflado, a rebolar na ponta das patas. E ainda teve de tentar o salto do muro duas vezes, enquanto o Farruco o motivava ao pé do rabo. Mas depois disso, já são duas noites de ausência. Será que aprendeu? E até quando se lembrará do aprendizado?

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Um cão feliz

Enquanto eu tomava banho a lenha mexeu-se e deitou fumo pela cozinha. Então abro a porta para desanuviar as ideias da casa. O Farruco está deitado na sua cama, ao lado da lareira. De repente, lá fora, uns gatos guincham e esgadanham-se rua abaixo. O Farruco levanta-se, corre, desce as escadas e derrapa até o focinho poder latir colado ao portão úmido da chuva de há pouco. Tudo isso em dois segundos. Os cães vizinhos imediatamente fazem coro, também despertados do seu sono de inverno — possivelmente, também dormitavam ao lado de suas lareiras — alardeando impropérios contra o absurdo de existirem gatos. Mas aí a comunidade felina afunda-se na aldeia e a canina recolhe-se satisfeita, mas não sem antes soltar uns esguichos em pontos estratégicos, a remarcar territórios. O Farruco, trabalho de espécie cumprido, sobe as escadas e senta-se ao meu lado. Diz-me, sem dizer: «Viste?» E eu digo, com a mão na sua cabeçorra: «Sim, sim, cãozinho valente. Eu vi.» Termino o cigarro, e ele, que sabe o que isso quer dizer, levanta-se e vai-se deitar na sua cama fofa encostada à lareira. Venho eu para cá, escrever. Ele está aqui, ao meu lado, e já quase dorme. Os olhos a meio-pau. E a noite segue, entibiada, ao som do crepitar das brasas que dão tom à cozinha e desenham as nossas silhuetas. Penso: este cão é feliz. E eu também, por poder perceber estas coisas e saber que sim.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Inundação

Chove com se nunca mais. Como se fosse preciso ser tudo de uma só vez por ser a última antes do fim do mundo. No céu, as nuvens rechonchudas dos alquimistas sopram vento de serpenteio d'água e então é difícil fumar na varanda. E se já fosse o tempo de se ir construindo uma arca de jeito? ali para a Garganta do Paiva, de quilha bem forte, que aguente o baque dos fósseis de Trilobites que hão de emergir desde o fundo remexido pela inundação? Na primeira fila dos animais do futuro, o Farruco. Mas como eles têm de subir aos pares, guarde-se então uma vaga para a Tuca, que é a paixão dele e vive no quintal aqui ao lado e que há também de ser salva para haver promessa. Ouviste, cãozinho? um trovão sem luz que o antecedesse! Um trovão sem espanto. Está quieta, imaginação! Cala-te! Eu preciso me concentrar porque o serpenteio d'água apagou o cigarro outra vez. Malditos alquimistas.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Cachorro pidão

A cozinha está escura (luzes apagadas, exceto pelas brasas que ainda restam na lareira e a claridadezinha do ecrã do computador). Olho para o Farruco. Está deitado no chão, estendido de lado, preto mais escuro que o negro da cozinha. Parece estar dormido. Chiu! ouço-o ressonar bem baixinho. Pego um bom bom e desembrulho-o cuidadosamente para não fazer barulho. Então olho para o Farruco de novo. Ele tem a cabeça levantada e as orelhas em pé. Pidão.

domingo, 15 de dezembro de 2013

Tardes de domingo

O domingo é o dia que me calhou para estar só. É bom. Ver a tarde em silêncio, a luz dourada que vai incendiando a paisagem, ouvir a música dos pássaros. O Farruco deitado sobre a faixa de sol que se estendeu no chão e que se vai arrastando, brincando com o passar do tempo. Ponho-me na varanda a ver o mundo, ouço-o. E conta-me imenso. Fala-me aos olhos numa linguagem que às vezes ouso traduzir. Não é bem uma tradução. É já o que eu entendi com os sentidos e depois se tornou meu e talvez não queria dizer exatamente o que a natureza me contou. Mas ainda assim foi o que ela mo revelou. Difícil dizer com ela. E ainda assim ouso dizer. Para tanto, eu tenho que tentar me fundir com a paisagem. Antes das palavras. Esquecer de mim como se eu nunca tivesse sido. Ser também por completo natureza. E só depois me lembrar. Depois, quando já nos separamos e eu e a natureza somos novamente duas maneiras diferentes de dizer, quase inconciliáveis. Como agora. Na minha vez, a vez das palavras.

sábado, 23 de novembro de 2013

Encantador de bichos

Desço de Carvalhais para a estrada. Um cão branco vem ter comigo. Faço-lhe festas. É magro, tem a cara afiada e rebola, talvez para espanar a alegria em excesso que lhe dei. Sigo adiante, o cão segue-me.

No lugar do Paço, outro cão. Minúsculo, preto, tem uma faixa castanha no peito e na cabeça. Aproxima-se, desconfiado, um cotoco de rabo entre as pernas. Ameaço fazer-lhe festas, mas rebola contente e põe-se atrás do cão branco em procissão.

No lugar da Lavoura, mais um. É branco e castanho claro, maior que os outros. Corre na minha direção e para acerca de um metro para abanar o rabo em tremenda aceleração. Solta um som de dengo e contorce-se até o esticão do meu braço para lhe tocar com um cafuné na cabeça. Sigo.

Quando passo pelo caminho da Seara, mais dois. Um cão preto e esticado, como se o seu destino fosse ser por inteiro de uma outra raça e não só a metade que lhe calhou; o outro é malhado em preto e branco e castanho, um cão mole em extensão, sem jeito para alegrias. Juntam-se à caravana. E agora vou pastoreando cinco cães. Fico espantado com a amizade deles. Vão a brincar uns com os outros e, se se adiantam, param e olham para trás para ver onde estou. Então voltam para perto de mim, cercando-me, e espalham mais alegria e confraternização.

Chego no largo de Trancoso, vou entrar no café. Eles se dispersam como se nunca tivessem andado juntos. Desfaz-se o encanto.

Não sei como isso acontece, mas vivo a ser seguido por animais pelos caminhos. Certa vez foi um cavalo. Estava a comer, e quando passei acompanhou-me rente ao muro até o extremo limite do seu pedaço de mundo, que era um campo enorme. Já aconteceu com uma vaca, que devia andar perdida e olhou-me com muita melancolia nos olhos e me seguiu por metade de Carvalhais até que me despachei para um canto estreito e despistei-a. Já aconteceu com gatos, que se foram juntando à minha volta e me acompanhando. E foi tão estanho que até suspeitei da imaginação. Gatos?! mas eram reais, assim como o trabalho imenso que tive para os espantar e evitar assim que o Farruco fizesse deles refeição.

Mas os cães são mais comuns, mais sensíveis ao encantamento. Expressam muito bem a alegria da companhia inventada. Devem ter qualquer excesso de fidelidade sempre a transbordar e precisam de a gastar, ainda que de improviso e rapidamente, para manter um nível razoável, um mínimo para o uso próprio na sua solidão de cães de rua. A natureza não é amiga dos desperdícios. Nem eu, então vinde a mim. Vamos dar mais uma volta pela aldeia. Vamos, façamos mais um milagre. Um milagre sem consequências para além da euforia. Um milagre possível. Do nosso tamanho. Que caiba inteiro na nossa condição.

domingo, 3 de novembro de 2013

Uma flor entre o muro e o quintal

Olha para o lado e vê aquela flor que já está a dormir, Farruco. Que silêncio! Já recolheu as suas cores para debaixo de uma sombra, mas a lua, entre uma nuvem e outra, tenta acordá-la tocando-lhe de leve com um dedo de prata. Como a natureza é implicante! A flor. Símbolo da sedução. Até o vento, que tem o poder de embaralhar nuvens e apagar a lua, amoleceu em brisa para ser cuidadoso ao tocá-la. Esta noite, Farruco, a natureza inteira converge nesta pequena flor adormecida entre o muro e o quintal. Vamos, cãozinho. Entra. Vou fechar a porta bem devagar. Não façamos barulho. É uma flor tão delicada que até os nossos pensamentos podem lhe fazer mal.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

O pinheirinho

Anda cá, cãozinho, deita-te aqui ao meu lado. Vês aquele pinheirinho ali no quintal? Está seco. Vestiu-se de castanho, mas não foi por causa do outono. Tão pequeno e ainda dentro de um vaso pequenino, morreu. Porquê, Farruco? Teve água e mais todos os cuidados que lhe eram devidos, mas já não é o primeiro que não vinga. Calhou-lhe a estação que condiz com o envelhecimento da natureza. O que queres, meu amigo? festas na tua cabeçorra? Falo da morte e só pensas no teu próprio sossego? Olha, tu fazes bem. Não tens metafísica por debaixo dos pelos. Aliás, nem o pinheirinho. Morreu, e só. Nós, os homens, é que inventamos a metafísica para justificar a nossa incapacidade para compreender o mistério da vida. É tão simples, não é, Farruco? Vem um dia como outro qualquer e morre-se. Tudo segue na mesma, é assim. Então chega mais para perto, vem. Toma lá as festinhas. Estamos vivos, e ainda é cedo para nós dois. Para tantos. O nosso inverno ainda não chegou. E até lá, amigo, que não exista nada além de calor na nossa imaginação.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Bem vinda madrugada

DSCN1846Com o que estás sonhando, Farruco? Olho para ele: estirado, de lado, no chão. A barriga aos sobressaltos, a cada soluço um pequeno latido. Meu cãozinho, a aspereza do mundo só encontrou essa fresta para te alcançar. De resto, a tua vida está toda protegida. Não te aflijas. Estamos aqui para te alimentar, para matar a tua sede e te encher de mimos e brincadeiras: frutos da tua inquebrantável fidelidade. Levanto-me. Vou sentar no chão, ao lado dele. Dois carinhos e livro-te da tua aflição, vais ver. O teu corpo logo amolece e mastigas um pouco de vazio, teu sinal de satisfação. Volto à minha cadeira, não muito longe. O Farruco levanta-se e olha-me seriamente, muito em paz: gosto de ti — ele pensa para mim. Retribuo pensando um sorriso que se me escapa dos meus para os olhos dele. Ele então vai para o canto da cozinha. Deita-se todo escarrapachado rente à porta que dá para a varanda. É o seu ar-condicionado. Vem a noite fresca ali por baixo, em namoros salientes com o mármore que dá as boas vindas para quem chega. E suspira aliviado, livre dos pesadelos. Veio a madrugada. E nos encontrou com uma paz assim, desse tamanho.

domingo, 14 de julho de 2013

Adão no seu quintal

Meu braço suspenso no ar e a mão em forma de garra a apontar para o Farruco. Ele deve considerar tal gesto uma espécie de anúncio do fim do mundo ou o prenúncio da sua morte ou o mais terrível e indesculpável xingamento. É no que se traduz para mim a sua reação. Salta, rosna, contorce-se todo. Mas se rapidamente desço a mão e faço festas na sua cabeçorra, logo aquieta-se e fecha os olhos em agrado. Trinta vezes o mesmo gesto; trinta vezes, incansavelmente, a mesma reação. Espécie de fidelidade que só cai bem nos nossos irmãos animais. Por ser sincera, sem coação, sem constrangimento. Por ser assim, e só. Tão simples. Um homem uma aldeia um cão, ser bicho ser gente natureza ao mesmo tempo, alegria. Adão em seu quintal. Paraíso.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

O cão surdo

Tenho pena de um cão que passa toda a noite aqui em frente de casa. O Farruco fica possuído de revolta territorial e vai até o portão soltar impropérios. O cão, nada, nem é com ele. Os cães do vizinho sempre ajudam no coro de injúrias e quase despencam de cima do muro sobre o invasor. É um cão castanho claro. Um cão feio. Mas soube outro dia que ele é surdo. Por isso passa incólume diante dos outros, sem qualquer afetação, e segue tranquilamente deixando as suas manchas nos muros e montes de terra. Um cão surdo. Eu tentei explicar ao Farruco, mas ele, apesar de ouvir muito bem, não me escutou. Então fico eu com pena do bicho. Por ser homem.

sábado, 15 de junho de 2013

A mulher catando cavaco

405447_10150497912732844_929300810_nEu, o Farruco e o Anjo da Guarda sentados na varanda dos fundos, a ver a paisagem. Lá em baixo, na estrada, surge uma mulher. De repente, ela tropeça, sai catando cavaco por uns cinco metros e quase cai. Mas retoma o equilíbrio e segue adiante. Eu, como do meu costume, imediatamente escangalho-me a rir. Olho para o lado: o Farruco e o Anjo da Guarda estão a me olhar com espanto e seriedade nos olhos. Digo-lhes não fiquem aí a morrer de inveja por eu ser humano. O Farruco então arqueia uma sobrancelha em desdém. O Anjo da Guarda não. Nem pose. Voltamos então a olhar para a paisagem, como se nada fosse. 

domingo, 2 de junho de 2013

Da imaginação, só um pouco

Domingo de sol, o canto dos pássaros e o calor suave e sem vento, mormaço leve. Resta pouco trabalho para a imaginação: só a ligeira invenção da sombra sob uma mangueira e eu e o Farruco estirados na relva lendo nuvens. E nossos olhos que se fecham, e que cedem mas resistem, só mais um pouco, aguenta firme cãozinho. Um já quase nada e descansamos de inventar. E sonhos.

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Logo depois de dar os nomes

11dez2012---um-homem-caminha-com-seu-cao-em-bristol-no-reino-unido-1355238184529_956x500Meu braço suspenso no ar e a mão em forma de garra a apontar para o Farruco. Ele deve considerar tal gesto uma espécie de anúncio do fim do mundo ou o prenúncio da sua morte ou o mais terrível e indesculpável xingamento. É no que se traduz para mim a sua reação. Salta, rosna, contorce-se todo. Mas se rapidamente desço a mão e faço festas na sua cabeçorra, logo aquieta-se e fecha os olhos em agrado. Trinta vezes o mesmo gesto; trinta vezes, incansavelmente, a mesma reação. Um homem uma aldeia um cão, ser bicho ser gente natureza ao mesmo tempo, alegria. Adão em seu quintal. Paraíso.

sábado, 30 de março de 2013

Eu, um cão e a ressurreição de um Deus.

lareiraNão, Farruco. Estás enganado. A Primavera não se atrasou, cãozinho. Mas escusas estar aí de sentinela, à varanda. Não vês, meu amigo? Há uma manta de algodão celeste encharcada sob o céu desta Estação. Mais para cima, Farruco: é lá que está o sol, à espera da sua vez. Para a mãe natureza só há necessidades, sem manhas. Aquieta-te, vai. Vamos para junto da lareira, que hoje é Sábado de Aleluia. Dia de revolta contra a traição, quando malha-se um Judas de trapos pelas ruas. «Traidor! traidor!», gritam as crianças com paus nas mãos, o ódio de todos os anjos a sair das suas bocas. Depois, o silêncio absoluto da criação. Cada ser vivo do universo à espera de um milagre. Daqui a pouco, uma nova Estação vai recomeçar: a ressurreição de um Deus! Não entendes bem destas coisas, amiguinho, mas sei que o sabes sem saber, sabes de tudo o que compete a um cão. E um cão, sendo como deve ser e sem hipótese de ser outra coisa, é perfeito: cumpre o destino que lhe coube, nem mais nem menos.

Ouve, Farruco! Fogos de artifício! Os sinos da igreja anunciam para toda a aldeia — são mais de mil anjos batendo asas no campanário: ressuscitou um Deus que foi dado como morto! mas não: está vivo! ainda mais vivo do que antes de ter morrido!

Então, Farruco, vamos juntos contemplar nas achas da lareira a imagem de um milagre. Deixa a Primavera para amanhã. Ou para depois. Hoje o sol é divino, meu cãozinho. Chega-te mais para perto um instante, eu quero perguntar-te uma coisa. Só entre nós: sentes o teu peito a arder como o meu?

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Silêncio sobre a cidade

0,,14630212,00Não são as nuvens cinzas, mas uma camada de silêncio sobre a cidade. E tudo parece estar de acordo, até mesmo o tempo, eu, os gatos, ela, o miúdo. Se calhar, neste exato momento, até o Farruco deve estar na varanda a olhar para a Aldeia, que é onde todo este silêncio deve ter nascido e de onde cresceu de mais para lá não caber e se estender até aqui. Se calhar.