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sábado, 25 de junho de 2022

Ressurreição

Tenho textos desde 2000 neste blog. Há 22 anos! 9 anos antes antes de vir viver em Portugal. Importado para cá, pois estou no Blogger desde 2006. Não me lembrava. Lembro-me apenas que odiava pontos de exclamação. Hoje não ligo. 

Estive a ler algumas publicações antigas e recentes e gostei do que guardei aqui. Na verdade, este blog sempre foi um bloco de anotações, um backup para uma publicação mais cuidada. No futuro. Era futuro, à época. Hoje em dia, 8 anos após a última publicação, já não sei como marcar esse tempo.

Já não escrevo — mesmo em off — há bastante tempo. Pelo menos há 5 anos, eu acho. Dediquei-me integralmente à fotografia como profissão. Aprendizado, criar carreira, buscar clientes e trabalhar. Amanhã (hoje já) vou fotografar um casamento, à tarde, mas são 04h30 da madrugada e dei comigo aqui, saudoso, orgulhoso e com alguma expectativa sobre retornar para este local de rascunhos de escrita. Modifiquei fundos, cores, tudo para o mais básico possível para que sobre muito para o que interessa: as crônicas. 

Vamos ver...

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Olhos de vidro

Tarde amena. Do segundo andar do café vejo as folhas dos plátanos à altura dos olhos: duas janelas cravadas nas pedras, vidros que vão compondo os silêncios que vou consumindo muito lentamente. Isolam-me. A luz do sol doura as folhas do lado oeste das árvores, que dançam devagar conforme o vento lhes vai solicitando. Estou só, aqui em cima. Metade da minha mesa sob o poente, a outra jaz em uma sombra fabricada em pedras. Um frigorífico canta baixinho, ao toque da eletricidade que lhe deu vida. Olho semicerrado para as folhas. Balançam agora com vigor. Dizem-me algo. Entendo, mas não sei explicar. A explicação não existe. São elas. Vou estar assim, a ver através dos vidros. São os meus olhos desta tarde. Olhos tranquilos, atentos. Compreendem o vento e as folhas. Conversam em luz e sombra. Tudo em silêncio.

domingo, 1 de junho de 2014

A velhinha cheia de estrelas

Vi na televisão outro dia uma baiana de seus quase setenta anos. Dizia muitas vezes «graças a Deus»:

«Graças a Deus me levanto todo dia às cinco da manhã e ando duas horas até a esquina onde graças a Deus vendo os meus bolos e salgadinhos há muitos anos sem faltar um dia.»

Uma senhora muito humilde. Dizia do seu trabalho àquela idade fazendo uma singela carinha de satisfação. Trabalhava até às dez horas e depois ia para casa e passava o dia inteiro preparando as muitas qualidades de bolos e salgados que tentaria vender no dia seguinte. E assim todos os dias, há décadas.

Mora em um barraquinho de paredes azuis e janelas de madeira nuas e rotas. Chamou-me a atenção que as janelas não ficassem justas nos quadrados vazados nas paredes, como se fossem quadros tortos, mal dependurados em pregos. Uma casa pobre, mas asseada. Vivia com mais dois irmãos quase da mesma idade e ao menos mais uma sobrinha. Era a única que trabalhava, mantinha sozinha a família.

No final da entrevista, o seu último graças a Deus:

«Deus me dá a oportunidade de preparar cinco tipos de bolos e comprar alguns refrigerantes e poder levar ao asilo um sábado a cada quinze dias, graças a Deus. O asilo fica aqui perto.»

O asilo fica à distância de duas conduções e ela demora cerca de duas horas para chegar lá. Mas ela contou isso muito a contragosto e não disse que se tratava de caridade. Foi a sua irmã quem a denunciou:

«Há mais de vinte anos ela faz isso de graça. Fica preocupada com os velhinhos.»

A velhinha não tinha quase nada em casa. Na sala só havia cadeiras de madeira e uma televisão antiga e desligada, sabe-se lá se ainda funcionava. A cozinha era um cubículo com um fogão, uma mesa pequena e uma pia de cerca de um metro de comprimento. Todas as paredes estavam mal pintadas de um azul celeste igual ao dos tetos das igrejas barrocas. E a velhinha fazia a caridade de tirar um pouco do pouco dinheiro que tinha para preparar cinco bolos e comprar refrigerantes para os velhinhos do asilo...

Comovi-me imenso. E quando conto sobre essa velhinha ainda tenho de interromper a escrita para conter a comoção com um olhar distraído para as videiras do quintal. O vento morno balança as suas folhas. Dois pássaros trocam divergências ou amores ao longe. Um carro passa na estrada lá em baixo e o ronco do seu motor desmancha-se depois de fazer a curva no entroncamento. Mas a velhinha...

Senti orgulho dela ser brasileira, muito orgulho. Tantas dificuldades e mesmo assim ela mantém o seu senso de humanidade intacto. É gente. Digo eu. E creio que o dizem muitos velhinhos de um asilo qualquer perdido em um bairro muito pobre de barro batido do interior da Bahia. Encheu-me de esperança.

Minha velhinha, com todo respeito, agora é a minha vez: graças a Deus que existe gente assim como a senhora. Graças a Deus. Parabéns. Abraço-lhe daqui com imensa força. O seu coração por dentro deve ser da cor das paredes da sua casinha, só que cheio de estrelas. Nenhuma delas torta como as janelas da sua casa. Por dentro do seu coração é só beleza e exatidão. Estrelas e mais estrelas. Tantas. Parabéns.

terça-feira, 27 de maio de 2014

40 anos, eu?

E lá se foram 40 anos. Mentira. Não se foram. Tenho cada um deles aqui comigo, intactos. Sou eu. É impossível saber quem eu seria se me tivesse faltado um deles. Dizem que é difícil chegar aqui. Discordo. Faço 40 como se fizesse 30, é o mesmo. É a idade do meu espírito, sem tirar nem pôr. Interiormente, creio que estou no meu melhor: tenho já um bocado de silêncio acumulado. Sempre me senti muito a vontade no mundo. Mas antes era como se estivesse em casa; agora, como um viajante. E a aventura de quem viaja é maior. Digo estas coisas como se de ontem para hoje algo tivesse mudado. Não. Hoje apenas parei para escrever. Tudo foi aos poucos. Eu, um edifício que se foi construindo. Agora já consigo ver a paisagem mais ao longe, cresci. Como verei daqui há 20 anos? caso ainda... Vou ganhando datas: tenho 8 e estou passando 4 meses em Portugal, a ver lobos, raposas e criando salamandras em baldes plásticos; tenho 12 e estou apaixonado e ainda não sei; tenho 13 e começo a dedilhar um violão gaúcho Sonelli de cordas de aço; tenho 15 e toco guitarra elétrica em bandas de rock, punk, metal; tenho 16 e penduro pulseiras hippies e um pingente com o símbolo da paz naquele mesmo violão; tenho 20 e volto à Portugal, fico 6 meses e já não quero voltar para o Brasil mas volto; tenho 24 e nasce a minha filha linda, pequena deusa que me foi entregue na Terra; e tanto tanto mais, tanta sorte; tenho todos esses anos aqui e agora comigo. Sou eu, quem mais? este eu que vou sendo sem deixar jamais, nem por um segundo, de o ser. Até gosto bastante de mim. Pudera. Só me conheço a mim próprio assim, sendo o que sou. É isso. Tenho um'alma de 40 anos, sem tirar nem pôr. E estou muito bem, obrigado. Acho que nunca estive melhor. Ainda não posso dizer já cheguei a esta idade, e tu? será que chegas? Aliás, a minha avó aqui há tempos disse de um senhor da aldeia, que havia morrido àquele dia: tão novo, coitado! Perguntei, quantos anos? Ela, que tem 86, respondeu arregalada e pôs um dedo no ar e três exclamações no fim: 75!!! No dia eu ri, mas agora hei de concordar: é verdade, que novo. De fato, ele lá chegou! Eu é que ainda não sei se chego lá! Vamos ver.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Entremeada de primavera

Choveu, trovejou, caiu a temperatura, e então tive de ir importunar um casaquito que já estava a hibernar às avessas no porão junto com as outras roupas de frio. Ficou entre o espantado e o alegre, mas eu lhe disse calma. É passageiro. Já dão calor, e muito, para a semana. Já voltas para a escuridão muito em breve. Mas a chuva até que me caiu bem, apesar dos tênis e meias encharcados hoje a tarde em Arouca. Vai me cair bem também uma tacinha de vinho tinto maduro. Então vou cumpri-la, se me dão licença.

domingo, 18 de maio de 2014

Billie Holiday

Esta tarde fui para Trancoso a ouvir Billie Holiday. Mas houve uma dissonância qualquer entre o pleno sol ardente da primavera e o som nos meus ouvidos. Editei a aldeia em preto e branco na imaginação, a ver se ela ficava mais a condizer. Ficou. Desacelerei as passadas e segui em edição até o café. E quase que me esqueço de colorir a aldeia de novo. Mesmo depois de a Billie se ter calado. Foi por pouco.

Lâminas de sol nos estores

Vê o sol. Sol ameno. Luz dourada que atravessa os estores. Lâminas que não nos ferem a pele. Os teus pelos atentos em um arrepio quase imperceptível porém prolongado. Lâminas que revelam o pó que acordou antes de nós e paira em espera. Quer as janelas abertas. Não as vou abrir. Ainda não. É tão cedo. Deixemos o mundo lá fora. Que fique do outro lado toda aquela gente que corre. Não digas nada. Não te mexas. Olha apenas aquelas lâminas de sol. Do sol que te dou. Toma. São sete lâminas que atravessam persianas que não nos pertencem. Não te ferem a pele. Eu sei que não. Deixa-me estar mais um pouco assim, a ver a atenção dos teus pelos. Estão em pé. Nós? Nós não. Nem tão cedo.

sábado, 17 de maio de 2014

O cuco

Acordei e fui ver o mundo. Sentei-me na varanda antes de me pentear e mudar de roupa, pus-me a fumar e comecei a contar os diferentes cantos de pássaros, como sempre faço. Mas hoje não são só os quatro ou cinco cantos quotidianos. Consigo contar até sete! depois perco-me. Hoje há mais alegria. Espera. O cuco! Sempre que o ouço (cuco... cuco...) é do lado direito, e o seu canto vem desde o pinhal até aqui. Todo ano. Mas nunca o vi. Quanto evoca um cuco? muito. Desde o relógio das histórias infantis até o livro «Tudo o Que Eu Tenho Trago Comigo» — em alemão, bem mais bonito: «Atemschaukel» — da Herta Müller. Minha vida toda, até agora. Tão bonito. Não bem bonito, mas. Canta, cuco! canta. Que eu até me esqueci dos outros. E logo hoje que eram tantos.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Memórias instantâneas

Uma das consequências de estar há alguns anos longe da terra onde nasci e cresci é que às vezes surgem-me sensações ou cheiros ou memórias fortíssimas, minuciosamente detalhadas, instantâneas. Algumas dessas sensações acontecem espontaneamente; outras por causa de algum motivo externo e que na maioria das vezes não tem qualquer relação direta com o que me despertou. Somos tão estranhos. Onde ficam guardadas todas essas coisas? algumas que sequer percebemos que estavam sendo gravadas para o futuro? São partes de nós sobre as quais não temos controle e no entanto são mais nossas do que as outras, as que controlamos, por representarem o que há em nós de mais íntimo e relevante. Aquilo de que fomos sendo feitos. Morro e não descubro tudo sobre mim. E esta talvez seja a causa principal da nossa permanente inquietação. Ser humano é nunca se saber de todo.

domingo, 11 de maio de 2014

Estar ao sol, assim

Estar ao sol, assim, na esplanada do café. Isso é que é bom. Dourar o espírito. Vejo gente a passar. Nos carros ou a pé, passam todos. Fico eu a fiscalizar o andamento do mundo, a trocar impressões com os pardais que se debruçam dos plátanos. Não dizem coisa com coisa. Penso igual.

Descaso

Tempo de absoluta inatividade laboral. Semanas deslizantes. Apenas estar. Ser em passividade. Calor de dia, frio de noite. E um pouco de solidão. Mesmo ao sol. No entanto, leituras e releituras incessantes. Todas prazerosas. Como deixamos passar detalhes. E o quanto gostamos de determinadas linhas ao ponto delas se nos mostrarem ainda mais belas em sucessivas leituras. Mas há também um certo desinteresse que me veio visitar e foi ficando. Deixou-me em modo recolhimento. Tenho saído muito pouco. E se saio é para longe. Para ver se encontro comigo, mas só por acaso. Então leio.