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domingo, 20 de abril de 2014

Aleluia! Aleluia! Ele ressuscitou!

Jesus ressuscitou. Mais uma vez. Mas outra vez só para nós, já que é sempre a mesma ressurreição no eterno apenas atualizada no tempo. Os sinos tocam: badaladas rápidas, duplas, com pressa, conforme a alegria que o dia traz. A alegria vem sempre com afobação, com o desejo irrepreensível de ser comunicada o quanto antes. A alegria é sangue tenso nas veias, é o homem. O Compasso vai passar em todas as casas levando uma cruz já vazia e o menino Jesus para que os moradores O beijem. Raminhos ou flores são postos feito tapete para recebê-lo desde a porta da rua até a da entrada de casa. E assim que o Compasso passar pela porta, vão gritar: «Aleluia! Aleluia! Jesus ressuscitou!» Então quem O traz vai passar um paninho na imagem e a família O vai beijar. Em seguida, o compasso se despede e sai para ir bater em outra porta (pressa, pressa! alegria!). A aldeia está cheia de gente. É a tradição. Come-se bolo Pão-de-Ló ou Trigo Doce, come-se com a família e com os amigos, e é uma festa de mais convívio social que o Natal, que é já mais familiar e íntimo. É Páscoa. Mais uma vez. Na eternidade não. Ou seja: é. Foi só uma vez mas para sempre, só que sempre, todo ano, nesta data de alegria e aqui primavera. Até as flores desabrocharam para saudar o menino Jesus. Para que possam servir humildemente de tapete no caminho por onde o compasso há de pisar. Desejo a todos vocês uma santa e feliz Páscoa. Que haja muito chocolate e doces, mas que sejam o excedente de algo muito maior: o sagrado. Desde que o homem é homem sempre houve a procura por uma relação cada vez mais estreita com o que o transcende. A nossa época é exceção, é o contrário. Que o homem não deixe de ser homem jamais. Que descanse de o ser, mas que não se entregue. Ainda há tempo. No eterno já não. Saudemos o tempo! que é o fruto mais saboroso que a divindade nos ofereceu. Boa Páscoa!

sexta-feira, 14 de março de 2014

Um dervixe na aldeia

Ao virar uma curva, vejo adiante, no meio de uma rua cerceada por altos muros de pedras, um senhor já com certa idade a girar com os braços abertos e a olhar para o céu. Como um dervixe. Gira e sorri para as nuvens. Quando me aproximo, ele olha para mim e desfaz o seu êxtase solitário. Sabemos que o modo de o conseguir é sempre em privado. Vou profanando-o com os meus passos e com a heresia dos meus olhos, que estão fixos nele. Ele sorri para mim, o mesmo sorriso que deu para as nuvens. Sorrio também. Passo por ele quase como se o atravessasse. Mais à frente, volto a cabeça para ver o que ele está fazendo. Ele já não está lá. Mas eu sei onde estamos. Estamos em Alvarenga, onde muito é possível.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Dia para não ser, mas estar.

Tarde de calor, mas lá fora, onde tudo é a abafar. Aqui dentro, com o vento do circulador de ar a bater-me nas costas e enfiado na sombra das quatro paredes do fundo do apartamento, o dia segue fresco e de cabelos levemente balançados. Tarde morosa, boa para não ser mas apenas estar. Tanta coisa resolvida e ainda duas, as mais importantes, pendentes para amanhã. Resolvo-as? espero que sim. Para eu poder existir no Rio de Janeiro em plenitude e não do lado de trás e através do vidro que o vou vendo. Tenho Portugal às costas a fazer força para o meu retorno válido e com soluções arrumadas na mala. Então, que esta semana fique tudo em ordem para a falta de ordem que eu vou precisar daí em diante. Mas só depois. Calma. Hoje não, hoje é dia de não ser mas apenas estar. Então vou ali comprar pão francês e mortadela defumada para estar melhor.

Jesus em ritmo de rumba

Tenho aqui no Brasil uma vizinha tão crente mas tão crente que a crença dela só funciona à partir do volume máximo e vai até a rouquidão do equipamento de som. Tenho as janelas a tremer com o nome de Jesus em ritmo de rumba, em refrão repetitivo e cheio de força gutural. Jesus, salva-me. Faça o aparelho de som da minha vizinha enguiçar.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

A construção do homem

Todos estes pensamentos inconclusos, sem razão aparente, sem que se perceba sequer o motivo de terem aparecido. Dúvidas? para ser humano, sim. O que um simples ato ou frase desencadeiam, imagina. E quão absurda é a vida, às vezes. E às vezes também inútil, cega de sentido, um tateio aqui e ali sem chegar a lugar nenhum apenas por não se ter decidido aonde. Quem já não o sentiu? tantas palavras gastas em determinada direção para serem desditas algumas curvas depois. Ou no choque com uma pedra bruta, que nos fere a língua afiada em argumentação. Um novo vocabulário para o destino que se definiu. Sim, é necessária a sua invenção. E que prazer uma mesma palavra para um novo sentido que lhe incumbimos. Um novo significado, virgem de decepção, de som puro como o primeiro choro do homem que acabou de nascer. Dói, mas ainda não o sabemos. Por isso, ainda não é bem dor. É o instinto a avisar que no futuro será mais. É carne. Só o saber é que nos fere a sério. E a doença incurável do homem, o pensamento. Essa lâmina que é diferente de todas as outras porque é afiada com o próprio uso. E que nos aflige a todos, cada um em sua profundidade. Cada qual com a sua ferida. Mas quanto mais cicatrizes, ainda assim, melhor. É sinal de que um homem vai sendo feito. E no entanto o homem é o único animal que ao ficar pronto deixa de o ser. Para sempre. Que mistério.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

O teu nome é homem

Os sapatos no chão (som abafado), tocando instrumentos: folhas secas com afinação em chuva menor, chuva fina, que já se foi mas insiste que não. O frio ressona nos muros de pedras. Basta um toque para que desperte e corra da ponta dos dedos para todo o corpo, em solavancos: arrepio de surpresa, engano?, pois o corpo recebe-o aquecido, coberto, como se fosse imune às temperaturas que não lhe convém. Por isso, o frio estremece de estranhamento e sai à procura do que lhe falta esfriar. Corre cada milímetro em intensa velocidade, até que os braços cruzem-se ao peito e o andamento seja outro. Acelera, homem frágil. Cobre-te de artifícios. Veste-te da tua inteligência e pequenez diante dos elementos. De que te adianta resmungar os ruídos da tua impotência? Como conseguiste sobreviver pelos séculos? sorte, necessidade? Não toques nas pedras, respeita-as; toma cuidado com a afinação das folhas, não pises na canção sem motivo. Ouve a resposta: não foi necessidade. Olha para o céu estrelado, diminui a tua importância e grita: foi sorte. Os planetas são incontáveis e nenhum deles ouviu falar de ti. O teu nome no resto do universo é silêncio. Impossibilidade. O teu nome é homem.

sábado, 9 de novembro de 2013

Névoa pelo caminho

Fui dar uma volta noturna pela aldeia e uma alvíssima névoa que vinha do Fundo da Vila me encontrou pelo caminho. Saudou-me. Eu ia pela estrada, sozinho, aí parei e disse-lhe oi, num sorriso, sem abrir os lábios. Ela passou a sua mão de chuviscos no meu rosto, acariciou-me, e me escondeu de todo o resto. Ficamos só nós dois. Eu e a névoa. Nenhum carro passou, som algum se ouviu. Eu estava dentro de um círculo perfeito úmido e escuro de chão, envolvido em suave alvura. Se eu não conhecesse bem a natureza era capaz de dizer que tudo aquilo era magia, mas conheço-a e por isso sei que era apenas o tanto de um mistério. Então, subitamente, a névoa desemocionou-se. Inventou uma pressa que não sei e passou por mim depois de me olhar com um adeus miudinho nos seus olhos brancos. Despedi-me, pegando o meu sorriso de volta. Mas ele não coube nos meus lábios fechados e tive de abrir uma fresta para que ele voltasse a dar. A berma da estrada reapareceu e o mundo voltou a ter infinitos além dos poucos metros daqueles últimos momentos. Imenso — espantei-me. Como pode ser? — o meu coração descompassado. Acertei os pés com o bater da realidade e vim embora menor do que eu tinha ido. Ou foi o mundo que cresceu enquanto eu, sem querer, enevoava-me. Não sei. Não se explica um mistério. Senão deixava de o ser — o que é impossível num mundo onde haja homens e névoas.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

A nossa crônica no Livro da Vida

Somos feitos de quê? de sonhos? pedras? Se soubéssemos seria tudo mais fácil. Como ler um livro. Palavras, frases, o que for preciso, está ali. Dizem as Escrituras que um anjo vai anotando o que vamos sendo no Livro da Vida. Provavelmente, um romance épico. Deve haver também capítulos de poesia onde estão escritas a vida de lirismo dos santos e heróis; e frases de sofrimento intenso e êxtase, como lhes convém para que o sejam. O virar do dia é uma nova página que se vai rabiscando letra a letra. E a nossa concentração é tão pouca que não conseguimos perceber a palavra inteira que vamos desenhando, a frase, o parágrafo, pois a nossa vista prende-se sempre na pequenez de uma parte e toma-a com a falsa grandeza de um todo que ainda não existe. Vai, escreve. Mas revisa diariamente o texto que te foi saindo pelos dedos do teu espírito, esse cronista. Prepara-te para quando finalmente o teu editor celeste, aquele anjo, te for publicar na eternidade. É o teu livro que vais escrevendo. Quem sabe se eu, na tua escritura, serei uma personagem qualquer de relevo? E se não, tanto faz, que eu saiba fazer de mim um trabalho original, uma crônica com alguma graça que faça rir ao anjo do Livro da Vida e nos facilite a amizade. É sempre bom ter cunhas. Quem dirá no céu. Nunca se sabe.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Halloween, Santos e Finados

Depois da farra das almas menos afortunadas no Dia das Bruxas, vem o Dia de Todos os Santos. É hoje. Dá-se parabéns no céu, há a lembrança das santas memórias terrestres em volta da fogueira do sol e deve-se beber do vinho de sangue diretamente da Videira Celeste. Mas aqui na terra o cemitério já foi arrumado e as campas estão limpas e floridas, pois amanhã é o dia dos mortos mais afortunados, Dia de Finados. Em religião é assim, há espaço para todos e cada um tem a festa que merece de acordo com a classe que lhe calhou na eternidade. O que há de comum a todos eles — e até Deus se fez carne para o cumprir — é a vida terrestre que se viveu. Não somos convidados de nenhuma dessas festas e delas não participamos. São festividades do nosso futuro e ainda não sabemos a fantasia que havemos de vestir. Não decidimos, e a vida que vamos vivendo é o tempo dessa escolha. Vamos experimentando as roupas que nos vão servindo até o dia em que não houver mais tempo para a prova. Só então vamos para a fila de uma dessas farras. Por enquanto, não. Ficamos em casa, em frente ao espelho, a ver se estamos bem e a combinar desde as cuecas aos acessórios. Oxalá que nunca satisfeitos.

Da verdade

— Onde está a Verdade?
— Não sabes?
— Não.
— Debaixo da terra.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

O leitor cristão

Um leitor cristão lê a vida de um mártir e acha tão belo, emociona-se, e diz para si mesmo que vai bradar a sua fé a quem primeiro lhe passar à frente. Fecha o livro cheio de enlevo, tanta firmeza a saltar-lhe dos poros, mas aí o primeiro que lhe passa é um ladrão. E o assalta. O cristão não lhe diz nada sobre a sua fé. Borra-se de medo enquanto mentalmente manda o ladrão para o inferno. Setenta vezes sete vezes manda-o para o inferno até chegar à casa. Liga a três amigos para contar do que havia sido vítima. Adormeceu algum tempo depois, lendo o livro do mártir.

sábado, 8 de junho de 2013

Desacerto entre o sagrado e o profano

Tocam os sinos no campanário. Ou melhor, uma gravação. Dá as horas. Mas nem sempre batem com as horas deste mundo. De qual será? o de tanta gente. Já ouvi de uma senhora, no café: «Eu acerto o relógio conforme os sinos da igreja, quero lá saber se ficam certas com as horas que passam na televisão.» E explicou que se seguisse as horas televisivas chegava atrasada à missa, como já lhe aconteceu duas vezes. Um desacerto entre o profano e o sagrado. Eixos diferentes, fusos horários distintos. O tempo da religião. Quem nunca se atrasou? Ainda assim, sorte de quem se atrasa no religioso. Porque o inesgotável do seu tempo resolve-se na eternidade. Já o profano. Aí não. Nele o tempo só tem uma direção: a dos olhos de quem dá adeus. De eterno, no profano, só o nunca mais: é sempre para sempre. Sempre.

sábado, 30 de março de 2013

Eu, um cão e a ressurreição de um Deus.

lareiraNão, Farruco. Estás enganado. A Primavera não se atrasou, cãozinho. Mas escusas estar aí de sentinela, à varanda. Não vês, meu amigo? Há uma manta de algodão celeste encharcada sob o céu desta Estação. Mais para cima, Farruco: é lá que está o sol, à espera da sua vez. Para a mãe natureza só há necessidades, sem manhas. Aquieta-te, vai. Vamos para junto da lareira, que hoje é Sábado de Aleluia. Dia de revolta contra a traição, quando malha-se um Judas de trapos pelas ruas. «Traidor! traidor!», gritam as crianças com paus nas mãos, o ódio de todos os anjos a sair das suas bocas. Depois, o silêncio absoluto da criação. Cada ser vivo do universo à espera de um milagre. Daqui a pouco, uma nova Estação vai recomeçar: a ressurreição de um Deus! Não entendes bem destas coisas, amiguinho, mas sei que o sabes sem saber, sabes de tudo o que compete a um cão. E um cão, sendo como deve ser e sem hipótese de ser outra coisa, é perfeito: cumpre o destino que lhe coube, nem mais nem menos.

Ouve, Farruco! Fogos de artifício! Os sinos da igreja anunciam para toda a aldeia — são mais de mil anjos batendo asas no campanário: ressuscitou um Deus que foi dado como morto! mas não: está vivo! ainda mais vivo do que antes de ter morrido!

Então, Farruco, vamos juntos contemplar nas achas da lareira a imagem de um milagre. Deixa a Primavera para amanhã. Ou para depois. Hoje o sol é divino, meu cãozinho. Chega-te mais para perto um instante, eu quero perguntar-te uma coisa. Só entre nós: sentes o teu peito a arder como o meu?