Morreu o Gabo, o Gabriel García Márquez. É (no presente, sim), para mim, um autor muito querido e diria mesmo que essencial em determinada época. Li todos os seus livros, e algumas biografias, exceto o «Outono do Patriarca», que não consegui ler mais do que as primeiras cem páginas pois sempre o pegava quando estava à espera de outro livro de outro autor e, enfim, este chegava-me sempre na página 99 ou 100 daquele, cuja leitura eu então interrompia.
Quando li «Crônica de Uma Morte Anunciada», pensei: quero escrever os diálogos das personagens intervenientes assim, a meio da narrativa, soltos, como os diálogos nos aparecem de fato na memória quando vamos contar uma história a alguém. Aparecem assim, soltos, independentes do que vamos pensando, na voz de quem os disse e que surge no meio e durante a nossa, que é a voz do narrador. Mas para que nos entendam melhor arrumamos essas vozes da forma usual ou os suprimimos ou adaptamos ao contexto, mas nessa obra as personagens falam em primeira, apesar de serem terceiras pessoas. Li esse pequeno livro umas três ou mais vezes. Primeiro por começar de trás para a frente, ou seja, por abrir logo com a morte da personagem e depois é que se vai contando como se chegou ali, no fim, mas no fim que é o começo desse livro apesar de termos de chegar à última página, que nos livros usuais seria a primeira. Não é mero artifício, mas um artifício bem elaborado e surpreendente, sem deixar de ser simples. Mas não só por isso. O modo como acontece e é arrumada a narrativa agrada-me muito. Principalmente no que diz respeito às falas de quem é citado.
Inventando rapidinho um exemplo, seria coisa do tipo:
Dona Cremilda viu o corpo. Naquele dia ela tinha saído mais cedo do trabalho na casa dos Afonsos e estacou ali, a olhar para o corpo estirado no chão de barro duro e crestado da seca fora de época. Ela parou, e ninguém a conseguia mover dali. Mesmo depois de terem levado o corpo embora, ela ainda permaneceu no local até tarde da noite. Mas ninguém viu a que horas foi para casa. Estive com dona Cremilda. Ela contou-me, entre um descuido e outro de espanto, os olhos vidrados, o olhar para dentro «Nunca vi tanto sangue, assim, de dia. Sei que o sangue é vermelho mas o dele, debaixo daquele sol de fim de tarde, pareceu-me azul».
Coisa assim, mas melhor, claro. Parece simples, mas naquela época de pós-adolescência foi-me importante pra caramba. Lembro de estar a ler deitado e de fechar o livro e ir-me sentar à beira da janela, lívido da descoberta.
Deixo aqui minhas boas lembranças do escritor. É também da minha família, como o Vergílio Ferreira, o Lobo Antunes, a Clarice Lispector, o Jorge Luís Borges, o Camus e outros mais, enfim, dessa família que vamos arrumando através dos anos, através das leituras mais atentas que o de costume, através das tantas biografias e fotos que vamos vendo, através de uma ou outra frase ou parágrafo que vamos imitando até que sejam nossos. Sou-te grato, Gabo. Estou triste por saber que foste, tu também, em definitivo, para o reino da ficção. Mas vai em paz. Assim seja.