Mostrar mensagens com a etiqueta Alvarenga. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Alvarenga. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, 27 de maio de 2014

40 anos, eu?

E lá se foram 40 anos. Mentira. Não se foram. Tenho cada um deles aqui comigo, intactos. Sou eu. É impossível saber quem eu seria se me tivesse faltado um deles. Dizem que é difícil chegar aqui. Discordo. Faço 40 como se fizesse 30, é o mesmo. É a idade do meu espírito, sem tirar nem pôr. Interiormente, creio que estou no meu melhor: tenho já um bocado de silêncio acumulado. Sempre me senti muito a vontade no mundo. Mas antes era como se estivesse em casa; agora, como um viajante. E a aventura de quem viaja é maior. Digo estas coisas como se de ontem para hoje algo tivesse mudado. Não. Hoje apenas parei para escrever. Tudo foi aos poucos. Eu, um edifício que se foi construindo. Agora já consigo ver a paisagem mais ao longe, cresci. Como verei daqui há 20 anos? caso ainda... Vou ganhando datas: tenho 8 e estou passando 4 meses em Portugal, a ver lobos, raposas e criando salamandras em baldes plásticos; tenho 12 e estou apaixonado e ainda não sei; tenho 13 e começo a dedilhar um violão gaúcho Sonelli de cordas de aço; tenho 15 e toco guitarra elétrica em bandas de rock, punk, metal; tenho 16 e penduro pulseiras hippies e um pingente com o símbolo da paz naquele mesmo violão; tenho 20 e volto à Portugal, fico 6 meses e já não quero voltar para o Brasil mas volto; tenho 24 e nasce a minha filha linda, pequena deusa que me foi entregue na Terra; e tanto tanto mais, tanta sorte; tenho todos esses anos aqui e agora comigo. Sou eu, quem mais? este eu que vou sendo sem deixar jamais, nem por um segundo, de o ser. Até gosto bastante de mim. Pudera. Só me conheço a mim próprio assim, sendo o que sou. É isso. Tenho um'alma de 40 anos, sem tirar nem pôr. E estou muito bem, obrigado. Acho que nunca estive melhor. Ainda não posso dizer já cheguei a esta idade, e tu? será que chegas? Aliás, a minha avó aqui há tempos disse de um senhor da aldeia, que havia morrido àquele dia: tão novo, coitado! Perguntei, quantos anos? Ela, que tem 86, respondeu arregalada e pôs um dedo no ar e três exclamações no fim: 75!!! No dia eu ri, mas agora hei de concordar: é verdade, que novo. De fato, ele lá chegou! Eu é que ainda não sei se chego lá! Vamos ver.

domingo, 18 de maio de 2014

Billie Holiday

Esta tarde fui para Trancoso a ouvir Billie Holiday. Mas houve uma dissonância qualquer entre o pleno sol ardente da primavera e o som nos meus ouvidos. Editei a aldeia em preto e branco na imaginação, a ver se ela ficava mais a condizer. Ficou. Desacelerei as passadas e segui em edição até o café. E quase que me esqueço de colorir a aldeia de novo. Mesmo depois de a Billie se ter calado. Foi por pouco.

domingo, 11 de maio de 2014

Estar ao sol, assim

Estar ao sol, assim, na esplanada do café. Isso é que é bom. Dourar o espírito. Vejo gente a passar. Nos carros ou a pé, passam todos. Fico eu a fiscalizar o andamento do mundo, a trocar impressões com os pardais que se debruçam dos plátanos. Não dizem coisa com coisa. Penso igual.

sábado, 3 de maio de 2014

Concerto no casamento

Ontem, eu e o José Luiz fizemos concerto num casamento. Conheço os noivos há poucos dias. Não são daqui, vivem na Suíça, mas adotaram Alvarenga como segunda terra e portanto a aldeia tornou-se deles também. Que noivos simpáticos, e bonitos. Fui ao casamento a trabalho, mas fiquei muito contente de ver o casal feliz e senti-me feito um familiar a torcer pelos dois. É já visível a felicidade. Parece que há muito tempo, pois é serena — tenho certeza, eu é que só os vi agora. Hoje pensei muitas vezes neles. No sorriso e na simpatia fácil dos dois, na alegria simples de quem está a viver como quem cumpre um destino. E apesar da difícil gripe que há três dias me assola o corpo, isso tudo me fez imenso bem. Continuo gripado na mesma, talvez até pior depois do esforço de ontem, mas trouxe as vias do espírito leves e desobstruídas. Na alma não tenho febre. Tenho sol.

domingo, 27 de abril de 2014

Jantar pizza

— Vais comer o quê? aquilo que está na geladeira, que nem eu?
— Aquilo o quê, vó?
— Aquilo que eu não gosto de dizer o nome…

Pizza. Minha avó não diz o nome por medo de se confundir e dizer «piça», que em Portugal é uma das alcunhas para pênis. Ela viveu mais de quarenta anos no Brasil, tem mistura sotaques, e do meio deles, da confusão da ‘pítza’ do Rio e da ‘piza’ de cá, pode sair assim um biláu ao engano.

Peguei duas, preparei-as e pus na mesa. Minha avó pega o ketchup e começa a luta, toda vez a mesma coisa:

— Porra, que esta porra não sai!
— Deixa que eu ponho os molhos, vó.
— Pera. É que estou sem força nos dedos...
(aperta com as duas mãos uma, duas, três vezes, e nada)
— Deixa, vó...
— Calma. Eu não sei como fazem isto assim tão difícil de apertar, cruz...
(vira, olha por baixo da embalagem, tenta mais uma vez)
— Posso?
— É, põe, põe. Bota cá do vermelho (ketchup ).
— Tem que ser pouco deste, vó, que isto é doce e a sua diabetes...
— Por isso que é bom, eu sabia. Põe logo. Isso. Agora o amarelo (mostarda).
— Molho de pimenta?
— Põe isso pra lá, não mete isso aqui na minha... nisto... nesta coisa que não digo o nome!
— Pizza...
— É. Isso.

E vai deixando as beiradas para dar ao Farruco, que já está sentado com a cabeça apontada para a minha avó. Joga a primeira beirada:

— Olha! viu só? coitado, está cheio de fome... Nem mastigou!
— Vó, a vasilha da comida dele está cheia. Ele não tem fome... É gulodice mesmo.
— Coitadinho... Toma, coisa feia. Come. Come mais um, toma.

No fim, o de sempre: café. Na verdade, o dela é cevada solúvel, a qual está de antemão na chávena, com adoçante, pronta e à espera da água quente que lhe vou despejar em cima. Bebe o 'café'. Depois se levanta (ai, corpo santo...) e o Farruco vem e posiciona-se atrás de mim, pronto para me seguir e acompanhar o meu cigarro na varanda. Enquanto isso, a minha mãe fazia requeijão caseiro e preparava pudim flan com calda de caramelo para mim. E fim. Só isso. Jantou-se bem, bebeu-se igual. Lá fora ainda chove.

domingo, 20 de abril de 2014

Aleluia! Aleluia! Ele ressuscitou!

Jesus ressuscitou. Mais uma vez. Mas outra vez só para nós, já que é sempre a mesma ressurreição no eterno apenas atualizada no tempo. Os sinos tocam: badaladas rápidas, duplas, com pressa, conforme a alegria que o dia traz. A alegria vem sempre com afobação, com o desejo irrepreensível de ser comunicada o quanto antes. A alegria é sangue tenso nas veias, é o homem. O Compasso vai passar em todas as casas levando uma cruz já vazia e o menino Jesus para que os moradores O beijem. Raminhos ou flores são postos feito tapete para recebê-lo desde a porta da rua até a da entrada de casa. E assim que o Compasso passar pela porta, vão gritar: «Aleluia! Aleluia! Jesus ressuscitou!» Então quem O traz vai passar um paninho na imagem e a família O vai beijar. Em seguida, o compasso se despede e sai para ir bater em outra porta (pressa, pressa! alegria!). A aldeia está cheia de gente. É a tradição. Come-se bolo Pão-de-Ló ou Trigo Doce, come-se com a família e com os amigos, e é uma festa de mais convívio social que o Natal, que é já mais familiar e íntimo. É Páscoa. Mais uma vez. Na eternidade não. Ou seja: é. Foi só uma vez mas para sempre, só que sempre, todo ano, nesta data de alegria e aqui primavera. Até as flores desabrocharam para saudar o menino Jesus. Para que possam servir humildemente de tapete no caminho por onde o compasso há de pisar. Desejo a todos vocês uma santa e feliz Páscoa. Que haja muito chocolate e doces, mas que sejam o excedente de algo muito maior: o sagrado. Desde que o homem é homem sempre houve a procura por uma relação cada vez mais estreita com o que o transcende. A nossa época é exceção, é o contrário. Que o homem não deixe de ser homem jamais. Que descanse de o ser, mas que não se entregue. Ainda há tempo. No eterno já não. Saudemos o tempo! que é o fruto mais saboroso que a divindade nos ofereceu. Boa Páscoa!

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Enamoramentos e primavera

Abri «Os Enamoramentos» do Javier Marías e engoli com os olhos 100 páginas de uma só panelada sem me engasgar. Não houve ponto final nem término de capítulo que me freasse a gulodisse. Mas aí o sol resmungou uma violência qualquer diante da minha indiferença e encostou-se ao meu lado na esplanada do café. Fiz uma pausa — pensei na possibilidade de uma indigestão mnemônica com o enredo descendo-me assim todo de uma só vez e para mais com o sol bruto a lascar-me a telha. E foi aí que reparei no mundo (tinha-me esquecido) e ouvi o grito ardente da primavera. Chegou. Agora a sério, creio eu. Faz sol com força e não há canto da aldeia que não se tenha iluminado e aquecido. Os melros flertam a vontade e pipocam, negros, com seus bicos cor de laranja, sobre a relva; os pardais tecem teias invisíveis no ar do largo de um lado ao outro; brotam turistas dos fontanários; flores misturam-se, mestiçam-se pelos canteiros e eiras; e eu começo já a estar adiantado na estação e a sentir-me deslocado nos meus lugares de costume, conforme sempre me sinto no verão — que há de vir em breve. É assim. Tenho de ceder a aldeia para os de fora, afim de fomentar o turismo e o progresso de uma temporada. Depois retrocedemos todos, e retomo-a de volta. Por enquanto há vida a crescer, cheia de juventude, por todos os lados, e os bichos e a natureza nascentes descobrem que têm mais força do que imaginavam. Oxalá nós também, que já estamos aqui há tanto e às vezes nos esquecemos desse pormenor.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Sustos e latidos

O Farruco ouve além dos nossos ouvidos. Então volta e meia se invoca com alguns cães ao longe que só ele escuta e de repente começa a latir dentro de casa. Cada vez que ele late, assim, do nada, a minha avó leva um susto e diz:

— Porra pro cão, que até mete medo!

Lá para a terceira vez, depois do terceiro susto consecutivo:

— Mais um berro e ponho-te lá fora na varanda! Ai, espera.

(pensa...)

— Se eu pôr o cão lá fora aí é que ele não se cala mesmo...

(e constata...)

— Porra pro cão, qualquer dia manda na gente!

sábado, 12 de abril de 2014

Pólen

Esta é a época do pólen. Pó dourado que cobre tudo. Os carros. Casas. Esplanadas. Até o livro que deixei uns minutos em cima da mesa enquanto pedia meu café teve a sua fina camada, quase invisível. Passo a mão sobre a capa e sinto o ouro que vai caindo para o chão. Há gente que sofre imenso nesta época por causa da alergia que têm ao pólen. Espirros. Olhos lacrimejantes. Falta de ar. Ainda bem que eu não. Acho bonito a natureza estender as mãos tão longe e por todos os lados, como se o pólen fosse o seu espírito a pairar sobre a terra. Espírito da vida, extensão, abrangência. Quando varro o pó da capa deste livro faço carinhos no seu espírito. É dourado. Real. Esfrego o dedo indicador no polegar, sinto o pólen. Vejo-o bem de perto. Quantas flores e árvores, quantos pinheiros tão grandes vão nascer de ti?

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Sol de um lado

— Ui! está sol aqui deste lado da casa, vó!
— Eu sei. Quando vi fui até praí a correr. Sem bengala.

terça-feira, 1 de abril de 2014

Ventania. E um cãozinho tolo que só ele.

Venta muito. Vento que assobia alto de encontro às portas e janelas. Estou na cozinha. A lareira apagou-se. Foi natural. A lenha deu o que tinha de dar, mas perto do fim engoliu para si as poucas chamas que restavam e ficou a abrasá-las ainda por muito tempo. Depois, enfim, cinzas. A cozinha tem duas portas: uma para a frente e outra para o quintal dos fundos. Estamos no alto, acima da estrada e na beira e a meio caminho de um elevado: e a casa vai levando fortes tapas de vento no lado esquerdo da sua cara de alvenaria, na face que dá para o quintal. Estive um tempinho em silêncio, a ouvir tudo isso. E sem querer imaginei a casa sendo arrancada e capotando de lado vale abaixo e adiante. Giros e giros até ser pequena lá onde a vista não alcança. E o Farruco, coitado, latindo desesperado, correndo atrás. Pus-me logo a rir. Cãozinho tão doido, meu Deus. Até em uma imaginaçãozinha tola destas ele faz graça.

sábado, 29 de março de 2014

O que houve, primavera?

Que há contigo, primavera? No Brasil é que a hora e lugar do outono. Em Portugal as flores imploram por um pouco de calor para enfim fabricarem as cores pelas quais ansiamos e temos direito. Trago os olhos cinzas. Como hei de apreciar aquela flor lilás que nasceu à força numa fresta daquele muro ali fora, em meio a uma dureza ancestral? Pedro, o que há contigo? Move os teus braços, espanta todas as nuvens e põe um sorriso em tua face de pedra. Já estou farto de melancolia. Ando saturado com a natureza, que cismou com a sépia. Põe as manguinhas de fora, que já é hora. Já passou. A primavera era para ontem. E tenho pressa.

domingo, 23 de março de 2014

Não dormi, sonhei

— Meu Deus do céu, cruz...
— Que foi, vó?
— Não dormi nada esta noite.
— Não?
— Não. Foi a noite inteirinha a sonhar! estou que não me aguento.

sexta-feira, 21 de março de 2014

Houve um pequeno atraso

São Pedro esqueceu-se de regar ali uns cantinhos da aldeia e então mandou um diazinho de chuva para terminar o seu serviço terrestre. As flores desses cantos são importantes. Precisam dessas gotas a mais para exercerem a beleza primaveril que delas aguardamos. Então todos os animais se recolheram em respeito e ansiedade. Exceto por um ou dois melros que tinham também o que fazer em certo atraso. As estações vêm assim, aos lances. E dão imenso trabalho para nossa irmã natureza. Não reparem. Em breve tudo há de se acertar e teremos enfim toda a beleza em cores que nos foi prometida desde o despontar da primeira flor sobre a terra. Uma flor que continha em si uma promessa. Promessa que há de se cumprir. Acredita.

domingo, 16 de março de 2014

O imenso São Bernardo

Um São Bernardo vem pela rua, em passos lentos. Meus olhos encontraram nele imenso desânimo. Os cães, em desacordo comigo, tomando o desânimo por arrogância, lançaram-lhe em cima ondas de latidos. O São Bernardo não demonstra qualquer alteração, como se não existissem mais outros cães no mundo senão há muito tempo atrás. Ele vem. Não alterou em nada o seu passo lento, mais lento ainda por causa do seu tamanho. Cansaço animal. Adianto-me até a varanda, vejo-o de cima. Enquanto os cães vizinhos estão no máximo da sua revolta, chamo-lhe. Uma, duas, três vezes. O cão levanta muito lentamente a sua cabeça imensa e olha para mim com a boca aberta e a língua em pêndulo. Ele olha, e são quatro segundos desse olhar. Olheiras vermelhas. Escorrer-lhe pelo focinho o que lhe resta da sua vontade já liquefeita. Não me ouve. Imagino que só vê a minha mímica (anda! segue teu o caminho! anda) e tanto lhe faz. Então estico o braço e aponto o dedo para adiante. Ele baixa o olhar, e esse baixar são dois segundos. Custa-lhe seguir, mas o que importa?, nem pensa nisso. Ele apenas vai. Segue, curvado, como se lhe custasse tanto cada passo. A cabeça baixa; segue indiferente aos latidos, que a esta hora já são os de toda a aldeia. Algumas pessoas já mostraram meias faces por entre as cortinas. Mantenho o meu dedo em riste, feito seta cujo alvo é o silêncio de todos os cães do mundo. Ele vai: lento. Tem a cabeça baixa. Leva dependurado no focinho um único fio de vontade líquida, a balançar. Vira em outra rua e desce sobre pedras de encontro à estrada. O alvo então é meu, conquistei-o, venci. Toda a gente fecha as cortinas e dá tudo pelo fim. Fico ainda um pouco na varanda. Tenho nos ouvidos o prêmio do silêncio animal. Os outros cães entraram. Ele, enfim, desapareceu. Mas tenho ainda aquele virar lento de cabeça na memória, aquela indiferença cansada e já parte de um corpo que não se importa com tudo o mais. Com tudo o que já deixou de existir e que agora é só um pouco que não chega, mas que importa? Esqueçam. Olho desde dentro do meu invisível para aquele olhar. Um olhar que poderia ter sido o meu, mas que hoje foi o de um imenso São Bernardo. Um imenso São Bernardo que no entanto já passou.

sexta-feira, 14 de março de 2014

Um dervixe na aldeia

Ao virar uma curva, vejo adiante, no meio de uma rua cerceada por altos muros de pedras, um senhor já com certa idade a girar com os braços abertos e a olhar para o céu. Como um dervixe. Gira e sorri para as nuvens. Quando me aproximo, ele olha para mim e desfaz o seu êxtase solitário. Sabemos que o modo de o conseguir é sempre em privado. Vou profanando-o com os meus passos e com a heresia dos meus olhos, que estão fixos nele. Ele sorri para mim, o mesmo sorriso que deu para as nuvens. Sorrio também. Passo por ele quase como se o atravessasse. Mais à frente, volto a cabeça para ver o que ele está fazendo. Ele já não está lá. Mas eu sei onde estamos. Estamos em Alvarenga, onde muito é possível.

quarta-feira, 5 de março de 2014

E veio o sol

E veio o sol. A vista até dói. Mas o espírito, pelo contrário, respira em harmonia depois de tão longa abstinência solar. Entendo perfeitamente o motivo de terem envolvido o sol em divindade desde que o homem é homem. Parece mesmo um deus. Fica ausente durante muito tempo, alheio às orações, mas depois ressurge repentinamente em milagre quando já ninguém mais se lembra do que pediu e a reza já é outra. Ninguém se iluda ou desespere. Um deus, por ser no eterno, não pode ser lento. Lento em relação a quê, se está tudo ali em simultâneo? Nós é que talvez sejamos apressados, porque temos de ter relação com tudo e então nos atrapalhamos com o quebra-cabeça do viver. Mas hoje há um deus no céu. Está ali, em todo o seu esplendor, visível a olho nu. Que milagre! E dá gosto estar aqui, assim, sentado na esplanada de um café, a sentir a sua bênção sobre a pele e a ouvir o corpo todo dizer amém.

terça-feira, 4 de março de 2014

A serpente do Vale do Rio Paiva

Eu queria escrever, então fui à varanda pedir umas palavras à natureza. Vejo névoa. Uma imensa serpente branca acordando no vale, sobre o rio Paiva. Vem subindo devagar, cheia de mistério mas sem provocação. Chegou à estrada. Um dedo dela tocou o meu nariz e encheu-me de arrepios sem medo. Névoa fria, que escondeu a aldeia. Estou cego do mundo, envolvido em manto alvíssimo. Ouço a névoa passar, sinto-a nos meus ouvidos como numa concha o oceano. Silêncio absoluto. Onde estou? Mas aos poucos volto a distinguir os galhos nus da ameixeira, depois a ramada e as videiras que hibernam em silêncio, as suas curvas enrugadas, velha videira incansável. Dou por mim no topo da aldeia, vejo lá em baixo o entroncamento. Bem vindo, quotidiano. A névoa se foi. A fria serpente há de seguir para outro lugar. Eu fico aqui, tímido por não poder descrever a natureza como ela merece, por ter na imaginação imenso funil por onde entra todo o real e seu indissociável mistério e ele ter de sair a espremer-se pelo estreito do meu inventário pessoal. Tímido. Pequeno. Enquanto o vale do rio Paiva tem sobre ele uma serpente imensa. Tão grande que é capaz de ocultar toda uma aldeia em suas curvas sem se esgotar. Eu fico aqui, cheio de espanto e admiração. Agradecido pelas palavras. Que também vêm mas logo em seguida vão para não sei onde. Como a névoa.

O Padre Velho

— Não passamos fome, mas também havia o Padre Velho que nos ajudava muito.
— Como era o nome desse padre, vó?
— Padre José, e era muito bonito. Tenho uma foto dele dentro de um livrinho da missa que ele me deu. Olha que me lembro de ser muito pequena, tão pequena que nem chegava na fechadura da porta, e o meu tio, ai ai, trouxe para casa algo que o padre lhe tinha dado e ouvi ele chamar um nome que parecia o meu (Céu Céu) e aí fui correndo, pequenita, toda contente de ser uma prenda, mas quando cheguei lá ele estava era a chamar o cachorro (chiu chiu). Ai ai.
— Como era o mesmo o nome do padre, vó?
— Estás a perguntar muito esse nome. Se calhar vais contar aos outros. Até hoje não me entra na cabeça como se pode escrever naquele coiso e todo mundo ver no coiso deles.
— Facebook.
— Porra! buqui… Hoje em dia há tanta coisa que já não posso dizer os nomes.
— Vou pôr no Facebook, mas até lá já esqueci de um monte de coisas do diálogo. Não quer que eu escreva esta conversa lá?
— Por mim… Mas se me perguntarem se fui eu que disse essas coisas digo logo que não.
— Aí vão pensar que eu inventei, vó.
— Eu tenho 86 anos, estou velha. Se disserem que inventaste, dizes que eu disse isso aí sim, mas como eu já estou meio caduca não me vou lembrar de o ter dito. Diz que é da idade. E aí ninguém vai estar a mentir.

sábado, 1 de março de 2014

Os sinos da aldeia

Os sinos da aldeia
um dia hão de tocar
(mas não os vou ouvir)
para um novo finado.

E nesse dia, os toques
(nos ouvidos da alma, setas),
só nesse dia, nunca mais,
hão de ser todos meus.