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quinta-feira, 5 de junho de 2014

Olhos de vidro

Tarde amena. Do segundo andar do café vejo as folhas dos plátanos à altura dos olhos: duas janelas cravadas nas pedras, vidros que vão compondo os silêncios que vou consumindo muito lentamente. Isolam-me. A luz do sol doura as folhas do lado oeste das árvores, que dançam devagar conforme o vento lhes vai solicitando. Estou só, aqui em cima. Metade da minha mesa sob o poente, a outra jaz em uma sombra fabricada em pedras. Um frigorífico canta baixinho, ao toque da eletricidade que lhe deu vida. Olho semicerrado para as folhas. Balançam agora com vigor. Dizem-me algo. Entendo, mas não sei explicar. A explicação não existe. São elas. Vou estar assim, a ver através dos vidros. São os meus olhos desta tarde. Olhos tranquilos, atentos. Compreendem o vento e as folhas. Conversam em luz e sombra. Tudo em silêncio.

terça-feira, 27 de maio de 2014

40 anos, eu?

E lá se foram 40 anos. Mentira. Não se foram. Tenho cada um deles aqui comigo, intactos. Sou eu. É impossível saber quem eu seria se me tivesse faltado um deles. Dizem que é difícil chegar aqui. Discordo. Faço 40 como se fizesse 30, é o mesmo. É a idade do meu espírito, sem tirar nem pôr. Interiormente, creio que estou no meu melhor: tenho já um bocado de silêncio acumulado. Sempre me senti muito a vontade no mundo. Mas antes era como se estivesse em casa; agora, como um viajante. E a aventura de quem viaja é maior. Digo estas coisas como se de ontem para hoje algo tivesse mudado. Não. Hoje apenas parei para escrever. Tudo foi aos poucos. Eu, um edifício que se foi construindo. Agora já consigo ver a paisagem mais ao longe, cresci. Como verei daqui há 20 anos? caso ainda... Vou ganhando datas: tenho 8 e estou passando 4 meses em Portugal, a ver lobos, raposas e criando salamandras em baldes plásticos; tenho 12 e estou apaixonado e ainda não sei; tenho 13 e começo a dedilhar um violão gaúcho Sonelli de cordas de aço; tenho 15 e toco guitarra elétrica em bandas de rock, punk, metal; tenho 16 e penduro pulseiras hippies e um pingente com o símbolo da paz naquele mesmo violão; tenho 20 e volto à Portugal, fico 6 meses e já não quero voltar para o Brasil mas volto; tenho 24 e nasce a minha filha linda, pequena deusa que me foi entregue na Terra; e tanto tanto mais, tanta sorte; tenho todos esses anos aqui e agora comigo. Sou eu, quem mais? este eu que vou sendo sem deixar jamais, nem por um segundo, de o ser. Até gosto bastante de mim. Pudera. Só me conheço a mim próprio assim, sendo o que sou. É isso. Tenho um'alma de 40 anos, sem tirar nem pôr. E estou muito bem, obrigado. Acho que nunca estive melhor. Ainda não posso dizer já cheguei a esta idade, e tu? será que chegas? Aliás, a minha avó aqui há tempos disse de um senhor da aldeia, que havia morrido àquele dia: tão novo, coitado! Perguntei, quantos anos? Ela, que tem 86, respondeu arregalada e pôs um dedo no ar e três exclamações no fim: 75!!! No dia eu ri, mas agora hei de concordar: é verdade, que novo. De fato, ele lá chegou! Eu é que ainda não sei se chego lá! Vamos ver.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Entremeada de primavera

Choveu, trovejou, caiu a temperatura, e então tive de ir importunar um casaquito que já estava a hibernar às avessas no porão junto com as outras roupas de frio. Ficou entre o espantado e o alegre, mas eu lhe disse calma. É passageiro. Já dão calor, e muito, para a semana. Já voltas para a escuridão muito em breve. Mas a chuva até que me caiu bem, apesar dos tênis e meias encharcados hoje a tarde em Arouca. Vai me cair bem também uma tacinha de vinho tinto maduro. Então vou cumpri-la, se me dão licença.

sábado, 17 de maio de 2014

O cuco

Acordei e fui ver o mundo. Sentei-me na varanda antes de me pentear e mudar de roupa, pus-me a fumar e comecei a contar os diferentes cantos de pássaros, como sempre faço. Mas hoje não são só os quatro ou cinco cantos quotidianos. Consigo contar até sete! depois perco-me. Hoje há mais alegria. Espera. O cuco! Sempre que o ouço (cuco... cuco...) é do lado direito, e o seu canto vem desde o pinhal até aqui. Todo ano. Mas nunca o vi. Quanto evoca um cuco? muito. Desde o relógio das histórias infantis até o livro «Tudo o Que Eu Tenho Trago Comigo» — em alemão, bem mais bonito: «Atemschaukel» — da Herta Müller. Minha vida toda, até agora. Tão bonito. Não bem bonito, mas. Canta, cuco! canta. Que eu até me esqueci dos outros. E logo hoje que eram tantos.

domingo, 11 de maio de 2014

Estar ao sol, assim

Estar ao sol, assim, na esplanada do café. Isso é que é bom. Dourar o espírito. Vejo gente a passar. Nos carros ou a pé, passam todos. Fico eu a fiscalizar o andamento do mundo, a trocar impressões com os pardais que se debruçam dos plátanos. Não dizem coisa com coisa. Penso igual.

terça-feira, 6 de maio de 2014

Falhanço da primavera

A tarde esteve indecisa sobre a primavera. O tempo todo. Ainda olhei pelas janelas do café de vez em quando mas não tomei nota de nenhuma reação. Bem que eu queria. Tinha ido pela estrada a pensar: quero escrever sobre a natureza. Mas ela permaneceu assim, afundada em neutralidade e às voltas com uns vapores que embaçavam os montes e sei lá. Voltei amuado. Tenho pena, mas hoje a primavera falhou. E eu com ela por estar à espera e nada. Parecia mesmo estar ali à espreita mas. Houve um sol opaco, enfim. Só para constar.

terça-feira, 29 de abril de 2014

A brisa verde

Sempre por esta hora, uma brisa atravessa a aldeia e vem dar à varanda. Se tivesse cor seria verde. Tem cheiro de eucaliptos, pinheiros, capim. Sento-me no topo das escadarias e espero. Olhos fechados, nariz atento, pele passiva. Quem me dera ser minúsculo e poder sair de mim mesmo para ouvir o seu farfalhar nos pelos do meu braço esquerdo, que é por onde a brisa me chega primeiro. Ponho-me de pé num salto e olho para o céu estrelado: não sou grande... Do alto do azul-negro quem me poderia ver, ainda que a toda força dos olhos? O meu tamanho seria o da não existência. No mínimo um diminuto espaço vazio, sem passado. Ponho-me de volta no meu lugar, sento-me. Para ser no meu pouco. O meu lugar é o da natureza imediata, que não dá nomes a si mesma e no entanto revela-se no nome de todas as coisas. Como neste: brisa. Nome soprado. Que sobe pelo meu braço e senta-se em meu ombro. (som de mar em concha no meu ouvido esquerdo) Cala-te! — pareceu-me ouvir em duas ondas secas. Vou atendê-la. Pelo sim, pelo não. Calei-me. Nem foi preciso muito tempo. Mas só então pude ouvir algumas coisas que não sei dizer. As mais importantes, até agora.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Enamoramentos e primavera

Abri «Os Enamoramentos» do Javier Marías e engoli com os olhos 100 páginas de uma só panelada sem me engasgar. Não houve ponto final nem término de capítulo que me freasse a gulodisse. Mas aí o sol resmungou uma violência qualquer diante da minha indiferença e encostou-se ao meu lado na esplanada do café. Fiz uma pausa — pensei na possibilidade de uma indigestão mnemônica com o enredo descendo-me assim todo de uma só vez e para mais com o sol bruto a lascar-me a telha. E foi aí que reparei no mundo (tinha-me esquecido) e ouvi o grito ardente da primavera. Chegou. Agora a sério, creio eu. Faz sol com força e não há canto da aldeia que não se tenha iluminado e aquecido. Os melros flertam a vontade e pipocam, negros, com seus bicos cor de laranja, sobre a relva; os pardais tecem teias invisíveis no ar do largo de um lado ao outro; brotam turistas dos fontanários; flores misturam-se, mestiçam-se pelos canteiros e eiras; e eu começo já a estar adiantado na estação e a sentir-me deslocado nos meus lugares de costume, conforme sempre me sinto no verão — que há de vir em breve. É assim. Tenho de ceder a aldeia para os de fora, afim de fomentar o turismo e o progresso de uma temporada. Depois retrocedemos todos, e retomo-a de volta. Por enquanto há vida a crescer, cheia de juventude, por todos os lados, e os bichos e a natureza nascentes descobrem que têm mais força do que imaginavam. Oxalá nós também, que já estamos aqui há tanto e às vezes nos esquecemos desse pormenor.

sábado, 12 de abril de 2014

Pólen

Esta é a época do pólen. Pó dourado que cobre tudo. Os carros. Casas. Esplanadas. Até o livro que deixei uns minutos em cima da mesa enquanto pedia meu café teve a sua fina camada, quase invisível. Passo a mão sobre a capa e sinto o ouro que vai caindo para o chão. Há gente que sofre imenso nesta época por causa da alergia que têm ao pólen. Espirros. Olhos lacrimejantes. Falta de ar. Ainda bem que eu não. Acho bonito a natureza estender as mãos tão longe e por todos os lados, como se o pólen fosse o seu espírito a pairar sobre a terra. Espírito da vida, extensão, abrangência. Quando varro o pó da capa deste livro faço carinhos no seu espírito. É dourado. Real. Esfrego o dedo indicador no polegar, sinto o pólen. Vejo-o bem de perto. Quantas flores e árvores, quantos pinheiros tão grandes vão nascer de ti?