Mostrar mensagens com a etiqueta Rio de Janeiro. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Rio de Janeiro. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, 27 de maio de 2014

40 anos, eu?

E lá se foram 40 anos. Mentira. Não se foram. Tenho cada um deles aqui comigo, intactos. Sou eu. É impossível saber quem eu seria se me tivesse faltado um deles. Dizem que é difícil chegar aqui. Discordo. Faço 40 como se fizesse 30, é o mesmo. É a idade do meu espírito, sem tirar nem pôr. Interiormente, creio que estou no meu melhor: tenho já um bocado de silêncio acumulado. Sempre me senti muito a vontade no mundo. Mas antes era como se estivesse em casa; agora, como um viajante. E a aventura de quem viaja é maior. Digo estas coisas como se de ontem para hoje algo tivesse mudado. Não. Hoje apenas parei para escrever. Tudo foi aos poucos. Eu, um edifício que se foi construindo. Agora já consigo ver a paisagem mais ao longe, cresci. Como verei daqui há 20 anos? caso ainda... Vou ganhando datas: tenho 8 e estou passando 4 meses em Portugal, a ver lobos, raposas e criando salamandras em baldes plásticos; tenho 12 e estou apaixonado e ainda não sei; tenho 13 e começo a dedilhar um violão gaúcho Sonelli de cordas de aço; tenho 15 e toco guitarra elétrica em bandas de rock, punk, metal; tenho 16 e penduro pulseiras hippies e um pingente com o símbolo da paz naquele mesmo violão; tenho 20 e volto à Portugal, fico 6 meses e já não quero voltar para o Brasil mas volto; tenho 24 e nasce a minha filha linda, pequena deusa que me foi entregue na Terra; e tanto tanto mais, tanta sorte; tenho todos esses anos aqui e agora comigo. Sou eu, quem mais? este eu que vou sendo sem deixar jamais, nem por um segundo, de o ser. Até gosto bastante de mim. Pudera. Só me conheço a mim próprio assim, sendo o que sou. É isso. Tenho um'alma de 40 anos, sem tirar nem pôr. E estou muito bem, obrigado. Acho que nunca estive melhor. Ainda não posso dizer já cheguei a esta idade, e tu? será que chegas? Aliás, a minha avó aqui há tempos disse de um senhor da aldeia, que havia morrido àquele dia: tão novo, coitado! Perguntei, quantos anos? Ela, que tem 86, respondeu arregalada e pôs um dedo no ar e três exclamações no fim: 75!!! No dia eu ri, mas agora hei de concordar: é verdade, que novo. De fato, ele lá chegou! Eu é que ainda não sei se chego lá! Vamos ver.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Memórias instantâneas

Uma das consequências de estar há alguns anos longe da terra onde nasci e cresci é que às vezes surgem-me sensações ou cheiros ou memórias fortíssimas, minuciosamente detalhadas, instantâneas. Algumas dessas sensações acontecem espontaneamente; outras por causa de algum motivo externo e que na maioria das vezes não tem qualquer relação direta com o que me despertou. Somos tão estranhos. Onde ficam guardadas todas essas coisas? algumas que sequer percebemos que estavam sendo gravadas para o futuro? São partes de nós sobre as quais não temos controle e no entanto são mais nossas do que as outras, as que controlamos, por representarem o que há em nós de mais íntimo e relevante. Aquilo de que fomos sendo feitos. Morro e não descubro tudo sobre mim. E esta talvez seja a causa principal da nossa permanente inquietação. Ser humano é nunca se saber de todo.

terça-feira, 6 de maio de 2014

Vida após assassinato

Fui assaltado muitas vezes. Parei de contá-las lá pela décima, mas passou em muito. Já puseram armas de fogo em todos os meus lugares decentes possíveis. Nos indecentes não, e ainda bem. E facas, mas estas só quando eu era mais novo e um canivete bastava para a impressão. Sobrevivi. Alguns dos assaltantes não. Por acaso alguns deles eram novatos na anti-arte de roubar e ficavam no mesmo local dias seguidos exercendo o anti-ofício e aí a turma do pedaço ia até lá e dava cabo deles. Quando eu ficava sabendo também ia ao local para dizer o meu 'bem feito' e encomendar a alma do defunto pelos caminhos tortuosos do além.

Vi muitos mortos na rua. Lembro-me do primeiro, que tinha tomado com um tiro bem no meio da testa. Vi a face da morte. Mas ali, na face do morto mesmo. Não me chocou nem um pouco o furo da bala e o sangue esparramado pelo chão. O que me chocou a sério foi o aspecto de um corpo sem vida. Como é evidente! olha-se e tem-se a certeza: está morto, é impossível que não. Agora é apenas sangue, carne e ossos. Ou seja, restos de gente.

Da última vez que vi assassinados foram logo seis de uma vez. Tinha ido à emergência levar o meu irmão que estava de visita no Brasil e havia se cortado no pé com vidro. Enquanto ele levava pontos a polícia foi trazendo corpos em cadeiras de roda e despachava-os onde estávamos enquanto ia buscar mais. Foi nessa noite que vi pela primeira vez um crânio cortado ao meio. Como se tivesse sido dividido por serra elétrica e milimetricamente aberto: corte vertical sobre o nariz que dividiu uma metade dali para a esquerda e a outra para a direita. Viam-se fossas nasais, cérebro, dentes, boca, tudo em duas metades iguais, serradas, uma para lá e outra para cá, presas pela nuca e pescoço como uma laranja aberta mas presa atrás pela casca. E foram chegando mais. Seis corpos, seis bandidos mortos numa perseguição policial. Cada corpo uma morte visível diferente. Nunca mais me impressionei com nada depois do que vi nessa noite. Dessa vez não vi a face da morte, vi o corpo inteiro dela, por dentro e por fora. Carne, ossos: o homem. E um cheiro a sangue coagulado que volta e meia me vaza da memória e ainda sinto.

É triste. Triste porque sempre que via um morto abstraía a maldade, transformava-o apenas em «um homem» e pensava: o que é feito da história dele agora? Nasceu, teve infância, gostou de um doce específico, vestiu determinadas peças de roupa mas gostava mais das azuis, beijou uma menina pela primeira vez em tal época, foi a uma festa e paquerou outra que depois viu com um amigo, esteve em lugares que o marcaram e davam saudade, gostou mais de uma tia que da outra, mas é agora? Que miséria é a morte, que esgota tudo em um instante. Que nivela tudo pela medida do nada. E punha-me a pensar durante e horas depois de ver uma pessoa assassinada: que raio de coisa é esta, a vida? tão fácil de se extinguir.

sábado, 3 de maio de 2014

Ayrton Senna, há 20 anos

Faz vinte anos que eu estava indo para a casa de uma namorada. Para chegar até lá eu tinha de passar por dois bairros. Quando andava por uma rua do segundo, rua parte asfalto parte barro seco, longa, com poucas casas e dois bares espaçados, ouvi um grito: «Não acredito!» Fez-se silêncio no mundo. Uma senhora saiu de casa e sentou-se na calçada. Chorava aos soluços: «É muito injusto! Um rapaz tão bom!» Continuei o meu caminho, mas fiquei mais atento à minha volta. Suspeitei de crime e por precaução alinhei-me mais aos muros da direita.

Mais adiante, três homens sem camisa ao balcão de um botequim. Um deles com a mão na cabeça e a olhar para a rua sem me ver; o outro com os olhos vidrados na televisão e um copo americano distraído entre os dedos, torto, do qual entornava aos poucos fios de cerveja; o terceiro chorava, a cabeça encostada à coluna de madeira que sustentava uma proteção de zinco do botequim. Parei. E então vi na televisão daquele bar repetidas vezes o acidente do Ayrton Senna. Juntei meu pequeno e absorto silêncio ao silêncio de todo o país. Depois disparei os passos para chegar mais depressa na casa da namorada e poder acompanhar melhor o triste acontecimento.

Pelo caminho, gente chorando. Grupos de pessoas na frente das casas, braços cruzados, olhos vidrados no nada. Ninguém queria aceitar a injustiça sem tamanho que era aquela morte. Foi o que mais ouvi durante toda a caminhada: «É injusto, ele não merecia!»

Foi a primeira vez que vi o 'povo' chorando por causa de um ídolo. Nunca havia imaginado que uma comoção assim pudesse acontecer de fato. E então fiquei também muito triste. Ayrton Senna não merecia ter morrido naquele acidente. Nem em qualquer outro. Tão jovem, tanto sucesso, um rapaz humilde e com olhar e postura infantis e sossegadas. Foi injusto. Continua sendo. E não haverá quem me justifique uma morte no auge da carreira e da adoração unânime de um país.

Hoje vou novamente desde o bairro Jardim Esplanada até o Rancho Novo através daquela mesma rua do Jardim da Viga onde um ídolo nacional morreu. Mas vou me demorar mais um pouco ao lado daqueles homens sem camisa no botequim. Peço mais um copo e pego a garrafa de cerveja do balcão de madeira forrado em zinco. Deixo-me ali um pouco junto deles, mais uma vez, a olhar para o nada e ainda sem conseguir acreditar naquela estupidez de acidente. Foi injusto. Ainda é. E o mundo inteiro confirma.

domingo, 27 de abril de 2014

Jantar pizza

— Vais comer o quê? aquilo que está na geladeira, que nem eu?
— Aquilo o quê, vó?
— Aquilo que eu não gosto de dizer o nome…

Pizza. Minha avó não diz o nome por medo de se confundir e dizer «piça», que em Portugal é uma das alcunhas para pênis. Ela viveu mais de quarenta anos no Brasil, tem mistura sotaques, e do meio deles, da confusão da ‘pítza’ do Rio e da ‘piza’ de cá, pode sair assim um biláu ao engano.

Peguei duas, preparei-as e pus na mesa. Minha avó pega o ketchup e começa a luta, toda vez a mesma coisa:

— Porra, que esta porra não sai!
— Deixa que eu ponho os molhos, vó.
— Pera. É que estou sem força nos dedos...
(aperta com as duas mãos uma, duas, três vezes, e nada)
— Deixa, vó...
— Calma. Eu não sei como fazem isto assim tão difícil de apertar, cruz...
(vira, olha por baixo da embalagem, tenta mais uma vez)
— Posso?
— É, põe, põe. Bota cá do vermelho (ketchup ).
— Tem que ser pouco deste, vó, que isto é doce e a sua diabetes...
— Por isso que é bom, eu sabia. Põe logo. Isso. Agora o amarelo (mostarda).
— Molho de pimenta?
— Põe isso pra lá, não mete isso aqui na minha... nisto... nesta coisa que não digo o nome!
— Pizza...
— É. Isso.

E vai deixando as beiradas para dar ao Farruco, que já está sentado com a cabeça apontada para a minha avó. Joga a primeira beirada:

— Olha! viu só? coitado, está cheio de fome... Nem mastigou!
— Vó, a vasilha da comida dele está cheia. Ele não tem fome... É gulodice mesmo.
— Coitadinho... Toma, coisa feia. Come. Come mais um, toma.

No fim, o de sempre: café. Na verdade, o dela é cevada solúvel, a qual está de antemão na chávena, com adoçante, pronta e à espera da água quente que lhe vou despejar em cima. Bebe o 'café'. Depois se levanta (ai, corpo santo...) e o Farruco vem e posiciona-se atrás de mim, pronto para me seguir e acompanhar o meu cigarro na varanda. Enquanto isso, a minha mãe fazia requeijão caseiro e preparava pudim flan com calda de caramelo para mim. E fim. Só isso. Jantou-se bem, bebeu-se igual. Lá fora ainda chove.

domingo, 9 de março de 2014

Os domingos de antigamente

Os domingos eram tão bons quando as ruas ficavam vazias e cheiravam a churrasco familiar. Gente nos terraços, lá no alto, em meio à fumaça das churrasqueiras. Copos de plástico sobre os muros. Risos que sobressaiam por cima do mormaço e que de vez em quando escapavam dois ou três andares até o chão. Eram domingos de sol relaxado, de cigarras protagonistas aplainando silêncios, ausência de trânsito, todas as lojas fechadas. Da janela eu via os carros dos familiares chegando com travessas enroladas em panos de prato de domingo, os homens com engradados de cerveja nos ombros, crianças engomadas, de meias brancas até quase o joelho, fitas nos cabelos das meninas, meninos de cabelo lambido em franjas de lado. E a dona da casa que vinha abrir a porta com um copo de cerveja numa das mãos e uma coxa de galinha na outra, dedos e lábios lambuzados. O abraço cuidadoso para não sujar ninguém, dois beijos fictícios, só estalos, sem toques, sorrisos de adultos, timidez de dois minutos das crianças. Eram domingos tão bons. Essa gente toda em churrasco e cervejas e convívio. Não havia internet nem telefones móveis. Só gente de carne e osso, e peles, olhos, lábios. Até para se ser estúpido e mal educado era mais difícil, pois havia os olhos e os punhos do outro ali na frente. Domingo que tive de ir buscar à memória nesta tarde sem cigarras. Nesta tarde sem o cheiro de sal grosso de outros tantos domingos.

sábado, 1 de março de 2014

Os meus carnavais

Soube quatro dias antes. Sim, do carnaval. Gosto da festa. Por causa dos carnavais que faziam no bairro da minha infância. Quase de frente para a minha casa, montavam um poderoso palanque de esqueleto feito com grossas e disformes vigas de madeira, selado na base com placas de compensado que vinham da madeireira com as faces pintadas de cor-de-rosa. Anos 80, 90...

Lembro-me da preparação da rua, quinta ou sexta-feira antes do carnaval.

Laçavam e dependuravam em barbantes grossos incontáveis tiras estreitas e compridas de plástico colorido (tinham cheiro de plástico novo, como o que se usava em casa para encapar os livros escolares no início do ano letivo). O vento chicoteava as fitarolas. Espiralavam, doidas, horizontais da ventania, a estalar no mormaço: slap slap. Mas só de vez em quando. Quando o vento do bairro suspirava ansioso pela festa.

Durante a madrugada, esticavam fios com lâmpadas incandescentes em zigue-zague, enquanto ilhas de garrafas de cervejas vazias jaziam pela calçada no trajeto que se ia enfeitando.

Lembro-me do cigarro dependurado na boca do «Besouro», entre o cavanhaque e os óculos redondos fundo de garrafa.

(Tarde da noite. Na rua, o som de uma garrafa partida. Levanto-me, vou à janela. O Besouro em cima de uma escada: uma das mãos segurando no último degrau, a outra com o fio das lâmpadas dali até o chão, rabiola de luz prestes a se acender. Ele grita — a luz do poste no meio da nossa distância, ofuscando nossos olhos e impedindo-nos de ver além da ofuscação:

— Vai dormir, Roldãonzinho!

Esboço um sorriso na certeza de que a miopia dele não me vai ver. E volto para cama. Mas não durmo: tento entender o motivo do riso esporádico lá fora, dos sons de escadas se abrindo e fechando. E cada vez que me levanto para ir ver a rua ela é sempre outra, e outra, e outra. É o carnaval que a vai tomando pelas mãos dos homens.)

Carnaval da Alegria, Carnaval do Esplanada e, mais tarde, já para os últimos, Carnaval da Paz. E foi sendo assim chamado para haver contraste com o que foi acontecendo com o passar dos anos, do que se foi apossando da festa, a qual, antes, era apenas uma festa de saltos e fantasias.

Foi a realidade. Foi-se alterando e levou com ela os carnavais da minha infância. A violência apagou as luzes incandescentes, cortou os barbantes e jogou ao lixo as fitarolas e nunca mais foram vistas ilhas de garrafas jazendo nas calçadas, porque já não houve mais preparativos noturnos. A minha rua, apenas uma rua, nada mais. Tiros e balas perdidas, acertos de contas, tumultos e correrias substituíram os saltos e a alegria. Varreram o Besouro, o Moisés, o Renato, o Silvinho, o Pezão. Ainda os procurei nos primeiros carnavais vazios e silenciosos. Fui à janela, mas não estavam lá. Aos poucos, alguns deles foram deixando de estar também no mundo. O Besouro e o Moisés sei que foram levados pela mesma violência que acabou com o carnaval. Foram assassinados. Com culpa? Sem culpa? Não me interessa. Com eles foram-se dois pedaços quase irrecuperáveis da minha infância. E se digo quase é por ainda poder trazê-los de volta, aqui, nesta crônica, que vou escrevendo de longe, sentindo o cheiro do plástico das encadernações, a ouvir o vento ansioso pelo carnaval, a olhar para a luz que há na minha memória e que ofusca apenas os meus olhos, os da minha imaginação. Eu, que também fui varrido, ainda que tardiamente, dos meus carnavais de rua. Mas ainda estou aqui, mesmo que distante. E vos peço licença. Por favor, abram passagem, porque eu trago muitos carnavais comigo.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Tenho dois países e tanto dentro de mim

Eu tenho uma alma. Vive no meu corpo, e junto dele faz o que eu sou como indivíduo. E tenho um lugar: o Largo de Trancoso. Se não estou aqui, é onde a minha alma e corpo haveriam de estar. Se estou, é e não é o que deveria ser. Meu espírito não tem pouso. É que o meu largo tem três quartos dele que ficam na minha imaginação, é a porção maior, que vitimou-se da minha memória. O largo de Trancoso, o largo duro, de pedra e alvenaria, esse um quatro, fica em Alvarenga, que é uma aldeia e no entanto não como as que costumam figurar em nosso imaginário. Há banco, mercados, restaurantes, cafés, empresas, e assim. E há também o Rio Paiva, que é um dos rios mais limpos da Europa; há montanhas, e nelas pinheiros e eucaliptos e vegetação para mim misteriosa. No segredo noturno das ruas, há sonoros e palradores cães; no alto e em pares, corvos enamorados que desenham corações que vou seguindo com os olhos e fechando-os com um laço de sorriso breve; sob a neblina das noites, corujas melancólicas, que amam a melancolia a ponto de não a saberem; e a pisar em pinhas e folhas, raposas solitárias de olhar perdido no mais íntimo dos montes. E mais. Não tenho vida que me baste para o descrever minuciosamente. Sou um tolo dos fragmentos. Um tolo que cisma de os agarrar e de os ver escorrer por dentre os dedos. E que sai todos os dias em busca de mais. Mas não tenho pouso. Sou dois olhos que vão pairando sobre a aldeia e a cidade, sobre um país e outro, dois países que são meus, e tudo o que vejo faz parte de mim. Então, que ninguém repare se me encontrar um pouco nos muros de pedras, entre o castanho do tempo e o verde dos musgos. Ou no poste de energia em frente à minha janela distante, duas mãos nos fios de alta-tensão, as pernas balançando e os calcanhares tocando o emaranhado de fios; ou entre as duas serras da vista dessa janela, sob o sol escaldante de um olhar que esqueci de pegar de volta e lá ficou para sempre, lá, aqui. Como hei de pensar no de onde eu sou? de onde? se sou de tanto? e se esse tanto é tanto que só cabe inteiro dentro de mim?

sábado, 15 de fevereiro de 2014

O sanhaço velho

Reencontrei um sanhaço que tem mais de dez anos de idade. Foi no Rio de Janeiro, no bar ao lado da minha casa de lá. Eu não sabia que um sanhaço podia viver tanto. Ele tem um probleminha nos pés, que estão meio atrofiados e cascudos, mas é até muito asseado. Quando minha amiga troca-lhe a água da banheira por causa do calor ou para promover a higiene ele imediatamente mergulha e faz festa. Está um pouco capenga da idade, mas tem lá as suas euforias e transborda água e satisfação para o jornal do dia que faz a vez do tapete no piso da sua jeitosa gaiola. Lembro-me da sua infância problemática. O sanhaço nasceu em um ninho no meio do emaranhado de fios do poste em frente à minha janela do primeiro andar. Um dia, espevitado que era — aventureiro, como disseram os seus irmãos mais tímidos naquela fatídica manhã —, coitado, acidentou-se. Caiu. Não morreu do tombo, e que tombo!, mas a minha vizinha teve de correr para o livrar de um atropelamento que seria fatal. Salvou-o por pouco. Como o pássaro ainda não sabia voar e a sua mãe era uma desnaturada que voava de mais e aparecia de menos, minha amiga apanhou-o e cuidou dele. E assim passaram-se dez anos. Na verdade, um pouco mais. E aí, quando eu fui ao bar e dei de cara com a sessão de banho, fiquei surpreso com a longevidade daquela ave e a sua boa disposição em plena terceira idade. E vai muito bem, obrigado. É de um azul embaçado e tem o bico salpicado de pó de alpiste, mas no geral é muito limpinho e falador — até demais. Já não se entende bem o que ele diz, parece que são só resmungos. Mas ele não se entregou ao tempo e isso é o que interessa. É um sobrevivente. Dizem que vai viver outros dez. Eu o confirmei, cheio de esperança. Oxalá que sim.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

O quer dizer sobre o Brasil?

Não sei o que dizer sobre o Brasil. Ou melhor, sei. Mas ainda é muito e então é preciso que o tempo faça a tosquia na minha memória para me aliviar do excesso, isto é, do dispensável (para mim). Nunca tive receio de perder o que ia escrever. Mesmo as notas que faço não são para a recordação das ideias, mas para o desenvolvimento delas. Frases ou palavras desconexas são já um texto inevitável, ainda que não desenvolvido. Mesmo que apagado depois de vir a luz dos olhos. Por isso não tenho pressa. Também é por isso que escrevo coisas sem ordem cronológica, apesar de não parecer e ser de propósito que não o pareça. Qual ordem? Como eu concedo a mim mesmo total e inviolável liberdade, o que me importa não é a ordem dos fatos no tempo em que aconteceram mas sim a importância que a recordação me sugere no momento mesmo da sugestão. Um instante. Não sei o que dizer? sei. Na verdade, a gente sempre sabe. A questão é ainda não o querer e ao mesmo tempo sim. Então, propositadamente, esqueço-me. E depois, se e quando algo me tocar a recordação, isto sim, será o resíduo que me interessa e vou aproveitar. E um dia, quando todos esses resíduos esgotarem-se, eu estarei feito homem. Um homem que existiu e que, de aí em diante, definitivamente completo, inteiro, estará finalizado. Para sempre.

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Adeus miudinho

Esta é a minha última noite no Brasil antes do regresso à Portugal. Ainda tenho o dia inteiro de amanhã, mas já sinto na língua do meu espírito o gosto do não sei quando volto a esta casa e a estas pessoas. Há previsões para um retorno em breve, mas quem mas garante? O caminho até as memórias recentes já se vai afunilando, e este meu jovem passado já vai sendo destilado. Sei que o que me vai sobrar será apenas um resíduo que vou levar comigo daqui até não sei quando. A memória é fiel, também misteriosa, e não admite controle sobre o arquivamento do que para lá mandamos. Esta é a última noite. E nas últimas noites nunca sei direito o que pensar ou sentir. Sei que penso menos e sinto mais. Mas por ser tanto o que sinto o meu pensar de menos não chega para o traduzir em vernáculo. Fico analfabeto de mim mesmo. Por isso, a única maneira que encontro para me expressar é através da mímica destas palavras. Incompreensíveis? Superficiais? Dispensáveis? Sim, se comparadas com o que tenho por dentro em convulsão. Faço então o gesto bem discreto de um até breve. Um adeusinho de longe e que quase não se vê. Há muita confusão na frente, mas está lá. Apertem um pouquinho os olhos que o vão ver.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Quatro dias

Só me restam mais quatro dias no Brasil e nem de longe fiz tudo que queria. Não houve temo hábil, isto é, tempo de passeio, que é o tempo que interessa. E mesmo as duas idas à praia foram, ainda assim, por ter de resolver coisas a meio do caminho e eu ter aproveitado a viagem, como se diz. Vou aproveitar essas migalhas de dias para ver alguns amigos que ainda não vi e para dar oi e tchau ao mesmo tempo, meio sem jeito por não ter tido tempo que bastasse. Mas passei todos os dias, exceto por cinco, com a minha filha. Trabalhou comigo, cansou-se comigo, levou com sol e mormaço na cabeça comigo, passamos madrugadas à janela fazendo upgrades um do outro, enfim, foi o mais importante e, egoisticamente falando, o que me era e foi indispensável. Agora é olhar engelhado para o sol e rir-me da sua imponência e dizer-lhe: queimas-me só mais um pouco, depois ignoro-te por meses a fio e não vou sentir grandes saudades de ti, ao menos por algum tempo. Mas só de ti. Do mais, custa-me pensar. Custa-me dizer. Então não digo.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Mulher desconhecida

Nem Iemanjá,
vindo sobre as ondas do mar
com seu sorriso de estelas.

Nem todo o sal
que brilha na trama do seu véu
de linhas de horizonte.

Nem seu cortejo de conchas,
batuque de pedras brancas,
rastro de espuma, viração; nada.

Nem o que pudesse imaginar
revelar-se-ia tão belo como
a tua silhueta subindo a praia
depois de um banho de mar.

(tuas mãos torcendo a água do cabelo
gotas eriçando a pele queimada de sol
meus olhos presos no visível do teu corpo
o teu invisível na minha imaginação...)

Não, mulher desconhecida.
Deste ou de outro mundo.
Inventado ou não. Nada.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Folga do espírito

Tarde silenciosa. Olho para o teto branco-gelo, deitado no sofá. A porta da sala está fechada. Escuridão saudável, por estar de acordo com a minha vontade e ser flexível. Bastaria abrir a porta. Se eu a abrir, é a escuridão que sai? ou será que a luz solar é que virá a galope montada no mormaço e tomará posse de tudo, expulsando a escuridão para não sei onde mas com certeza um lugar de esquecimento, até de noite, eu não sei. E tenho preguiça de saber. Então fico aqui, estendido, as pernas dependuradas para além do sofá, balançando, monótonas, num ritmo ancestral. Ser carne. Dei folga ao meu espírito, que hoje saiu só e não disse aonde nem quando volta.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

O meu lugar sou eu

Quando eu ando e olho para o que me cerca, sinto-me estranho. Há uma ruptura. Eu interrompi o fluxo do que aqui se ia acumulando e fui me deixar em parcelas em outro lugar. Lá onde residem as memórias de outros, de antes de mim. Na pátria, isto é, na terra dos pais. Mas se me ponho a pensar. Será que. Não fui eu quem interrompeu o fluxo, eu é que sou o fruto de uma interrupção bem mais grave e anterior. A dos de outro passado em outro lugar. Eles é que vieram e então eu, sofrendo um acidente geográfico, nasci na interrupção que era deles. Depois eles voltaram ao lugar de origem e fiquei eu aqui. E mais tarde eu também fui e pratiquei a interrupção que me calhou. Por isso, a dupla nacionalidade me caiu tão bem. Se olho para os meus documentos duplicados, uns do Brasil, outros de Portugal, sei: duplicados, mas só os documentos. Eu não, mas não sei explicar como não. Uma questão que já me acompanha há muitos anos. Por isso, eu não penso no de onde. Vou sendo um pouco lá, outro aqui. E se posso ser em dois lugares e continuar a ser eu mesmo é por ter em mim esta unidade. Este, o que narra. O que sou e vou sendo, aí sim, sem interrupções, no mais íntimo possível de mim mesmo. Não importa onde, porque o meu lugar sou eu.

Olho gordo

Com pedras e bichos eu sempre tive muita paciência. Mas quando eu era miúdo e ficava impaciente demais com gente, eu ia numa rezadeira. Chegando lá, a mulher, que era uma velhinha muito enrugada, pegava dois raminhos de arruda e passava em mim enquanto sussurrava umas rezas secretas e de grande simpatia nos céus. Eu sentia cócegas, mas eram cócegas sacralizadas e então eu ficava cheio de um silêncio respeitoso. Mentira. Na verdade, eu ficava quieto para tentar entender o que a velhinha dizia. Nunca entendi. Mas os deuses deviam-na compreender porque eu depois ficava menos misantropo e mais sociável. Mas aí os raminhos quebravam-se todos logo nas primeiras passadas e a velhinha dizia-me, espantada: menino, você tem muito olho gordo em cima, tome cuidado! nunca vi uma coisa dessas, cruzes! E depois eu voltava para casa enumerando mentalmente os vizinhos que me poderiam ter presenteado com o raio do olho obeso. E a que vem essa história? Explico. Acho que estou sobrecarregado. Devo ter pego um feitiço por engano quando saía do aeroporto, enfim. Tenho um violão que ficou no Brasil quando da minha ida para Portugal. Durante quatro anos ele esteve no canto da sala, em pé, com as cordas intactas. Mas aí eu cheguei e desde então duas cordas arrebentaram sozinhas, sem que ninguém às tocasse e sempre quando eu estava sozinho, quase me fazendo falecer de susto. E o pior é que a rezadeira, que era muito velhinha quando eu ainda era criança, já deve ter ido para o lugar de ouvir as rezas dos intermediários e fazê-las funcionar aqui embaixo. E agora? quem me vai arrudar? Vou acender incenso, a ver se emagreço o olho que me calhou em cima e que deve ter escorregado com o suor e foi dar no coitado do violão.

Seis por meia-dúzia

E agora esta. Os atendentes de loja e telefone do Rio de Janeiro estão tramados em me irritar. Deram agora para me corrigir o seis para o meia, como se eu fosse um alienígena recém baixado na Terra e ainda não soubesse dizer os números. Não entendo. A cisma transformou-se em hábito? Se digo um dois seis, perguntam-me: desculpe, senhor, um dois? Repito: um dois seis. E eles, em tom de espanto e correção: um dois MEIA, não é, senhor? Digo sim, isso mesmo, seis. E o atendente repete, já sem grande paciência, como se disso dependesse a continuação do nosso diálogo: então é um dois M E I A, não é, senhor? Tento me explicar: querida(o), é seis, mas diz-se meia (dúzia), feito gíria. Eu também dizia assim, mas como em Portugal o seis é seis mesmo voltei chamá-lo pelo nome e não pelo apelido. E aí do outro lado acontece um silêncio. Devem pensar: quem este indivíduo pensa que é para dizer que o seis é seis? E eu, do lado de cá, xingo-os: que burro! isso era lá coisa para questionamentos? E ficamos assim, numericamente estranhados. Não sei o que faço. Só sei que não vou voltar a dizer meia quando tiver de dizer seis. Que ideia. E tenho dito.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

A casa onde cresci

Da janela, eu vejo a minha infância. Ruas que os meus pés cada vez maiores pisaram, até o dia em que minhas pegadas tornaram-se adultas e desde então sempre iguais. Caras envelhecidas que eu conheço desde quando era ainda a juventude que estampavam. A rodovia, sempre jovem, barulhenta de dia e de madrugada pulsações. Mas aqui dentro... Interruptores de luz, os mesmos desde que fui sendo gente. Cada parede sou eu. Vivi na mesma casa desde o meu nascimento até os trinta e cinco anos, então toda ela confunde-se com a minha pele e com o que está daí para baixo. Nesta casa, no Brasil, foi depositada a semente da minha memória. Aqui. Só aqui, talvez, eu possa conversar com o que de mim fui esquecendo. Comigo mesmo, mas não o mesmo. Com aquele que está ali, agachado sobre o tapete da sala, brincando com um robozinho azul e vermelho. Aquele que nem imagina que um dia voltaria ao passado para ver a si mesmo e pensar: quase igual. Ou só quase. Que é a parte da frase que sou eu.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Seu Jão

— É, seu Zinho, o bom filho à casa torna.
— Pois é, seu João. Como vão as coisas?
— A vida é uma desgraça mas a gente se alegra, não é mesmo? Ando pra cá, mais a Maria, às voltas com o aprumo da casa. Obras. Sabe como é, uma lixeira que dói. Mas na hora do descanso o café cai bem. Corpo cansado aceita com prazer regalias. Quando o sol se vai a pôr já fico feliz do café. É aquela história, seu Zinho, antes do bolo pronto a gente já sente o cheiro bom dele e vamos comendo com a imaginação.
— Por falar nisso, tem bolo, seu Jão?
(Maria, traz pedaço de bolo pro estrangeiro — risos)
— Bolo de fubá, você gosta?
— Adoro. Se com café, então, nem se fala.
(Passa um café também, Maria)
— Tá ficando velha, a mulher. É a vida. Eu só não fico velho também porque não me olho no espelho. Mas mulher, sabe, né, se olha toda hora. Sente saudades dela mesma. Vai conferir. Vê cada envelhecimento novo. Explico a ela que não se olhe senão parece mais velha a cada vez, então ela diz que quando olha para o relógio o tempo demora mais para passar. Diz que o tempo no espelho tinha que ser igual. Eu concordo com ela, o tempo é que não.

Simpatia do brasileiro

É um deleite ouvir os diálogos cheios de piadas e sacanices e sorrisos e sentir na pele a boa vontade e a simpatia do brasileiro. Seja conhecido ou não. E tenho exemplos a toda hora. Basta pedir uma informação e lá tomamos com o cuidado de uma mão no ombro enquanto a outra aponta para aonde se deve ir. Mas o apontamento é logo interrompido: «Eu te levo lá, vem» E temos um guia que vai conosco até um ponto do caminho onde já se torna visível o nosso destino, ainda que seja para o lado oposto daquele para aonde ele estava indo. «É ali adiante. Quer que eu te leve lá?» E digo não, não precisa, mas muito obrigado meu irmão. E o guia diz que nada, eu hein. E dá um sorriso e segue mesmo como se nada. Debaixo do sol, a cara engelhada e o suor a estampar as costas da camiseta. E vai. Já me esqueceu a meio, mas eu não. Fico ali parado, pensando: eu faria isso por ele? E não sei. Mas gostaria imenso de ser gente assim.