Os sinos da aldeia
um dia hão de tocar
(mas não os vou ouvir)
para um novo finado.
E nesse dia, os toques
(nos ouvidos da alma, setas),
só nesse dia, nunca mais,
hão de ser todos meus.
Os sinos da aldeia
um dia hão de tocar
(mas não os vou ouvir)
para um novo finado.
E nesse dia, os toques
(nos ouvidos da alma, setas),
só nesse dia, nunca mais,
hão de ser todos meus.
Nem Iemanjá,
vindo sobre as ondas do mar
com seu sorriso de estelas.
Nem todo o sal
que brilha na trama do seu véu
de linhas de horizonte.
Nem seu cortejo de conchas,
batuque de pedras brancas,
rastro de espuma, viração; nada.
Nem o que pudesse imaginar
revelar-se-ia tão belo como
a tua silhueta subindo a praia
depois de um banho de mar.
(tuas mãos torcendo a água do cabelo
gotas eriçando a pele queimada de sol
meus olhos presos no visível do teu corpo
o teu invisível na minha imaginação...)
Não, mulher desconhecida.
Deste ou de outro mundo.
Inventado ou não. Nada.
Um passarinho pousou no quintal
E olhou para mim de lado,
Sem jeito. Tinha pressa de pardal.
Então pôs um olho enviesado,
Depois apontou para o céu
E voou. Muito longe.
Até ser apenas um ponto
que uma nuvem apagou sem querer.
A chuva,
tímida,
caiu entre duas idas à janela.
E ficou estendida,
enrubescida sob um candeeiro,
em fina camada sobre o chão.
Dei de olhos,
fingido.
Deixei de rastro uma piscadela
e virei as costas num gesto simples,
mas sincero,
de consternação.
E quando tu,
Minha amiga morte,
Me tiver finalizado,
Não direi mais nada.
Hei-de estar calado.
Para sempre.
Em silêncio prazeroso.
Eterno dali para frente.
Mergulhado em mar terroso,
Submerso, da minha vida
Inteira afogado.
O destino cumprido,
Que tu, minha morte,
Ao impor o meu fim,
Far-me-ás realizado.
Hei-de estar calado.
Não vou nem mais vão
Falar sobre mim.
Para mim, então,
jamais.
No entanto, os meus ouvidos
Serão duas flores abertas.
Para o céu. Para Ti.
E da minha boca,
Se ouvirá apenas um som:
O da terra.
Prosa Quebrada (O Cortador de Nuvens)
Eu moro na parte mais alta da aldeia
e a minha bicicleta é azul celeste.
Quando eu monto nela
e atravesso a freguesia na beirinha da estrada,
quase a cair de tão na beira que é o meu caminho,
o meu azul se junta com o azul de fundo,
o do céu.
Mas só para quem me vê lá do outro fundo,
o da aldeia.
E é lá em baixo que vejo uns olhinhos.
Olham para mim, para cima.
É criança, e diz:
— Olha! um menino montado no céu a voar!
Diminuo o voo, todo bobo por ter sido reparado.
Mas criança é esperta, e logo logo repara demais:
— Mas tem roda à frente e atrás! Cruzes! para que servem?
Sou menino de outras inteligências, e explico:
— Não são rodas, observe: é meu cortador de nuvens!
A criança arregala os olhos de espanto,
parece filósofo.
Senta-se, pega uma tangerina
e põe-se a descascá-la num canto,
sem me tirar do seu dia,
um olho em cada roda, muito concentrado.
E pede-me, cheio de sabedoria:
«Deixas-me dar uma voltinha?
Dou-te um gomo fresco tão doce
que vais desistir do voo
e nunca mais hás-de tirar os pés
do chão da freguesia!»
Desci até o fundo da aldeia
e emprestei-lhe a bicicleta.
Já se passou muito tempo,
mas ele ainda voa lá por cima
a cortar nuvens mais frescas
que o gomo de tangerina
que ele me deu.
Não tenho pressa.
Quando criança cisma de voar,
não há quem derrube!...
Nem tangerina que dure
o tanto de nuvens
que é preciso cortar.