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sábado, 1 de março de 2014

Os sinos da aldeia

Os sinos da aldeia
um dia hão de tocar
(mas não os vou ouvir)
para um novo finado.

E nesse dia, os toques
(nos ouvidos da alma, setas),
só nesse dia, nunca mais,
hão de ser todos meus.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Mulher desconhecida

Nem Iemanjá,
vindo sobre as ondas do mar
com seu sorriso de estelas.

Nem todo o sal
que brilha na trama do seu véu
de linhas de horizonte.

Nem seu cortejo de conchas,
batuque de pedras brancas,
rastro de espuma, viração; nada.

Nem o que pudesse imaginar
revelar-se-ia tão belo como
a tua silhueta subindo a praia
depois de um banho de mar.

(tuas mãos torcendo a água do cabelo
gotas eriçando a pele queimada de sol
meus olhos presos no visível do teu corpo
o teu invisível na minha imaginação...)

Não, mulher desconhecida.
Deste ou de outro mundo.
Inventado ou não. Nada.

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

O pardal

Um passarinho pousou no quintal
E olhou para mim de lado,
Sem jeito. Tinha pressa de pardal.
Então pôs um olho enviesado,
Depois apontou para o céu
E voou. Muito longe.
Até ser apenas um ponto
que uma nuvem apagou sem querer.

domingo, 30 de dezembro de 2012

Consternação

A chuva,
tímida,
caiu entre duas idas à janela.
E ficou estendida,
enrubescida sob um candeeiro,
em fina camada sobre o chão.
Dei de olhos,
fingido.
Deixei de rastro uma piscadela
e virei as costas num gesto simples,
mas sincero,
de consternação.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Hei-de estar calado

E quando tu,

Minha amiga morte,

Me tiver finalizado,

Não direi mais nada.

Hei-de estar calado.

Para sempre.

Em silêncio prazeroso.

Eterno dali para frente.

Mergulhado em mar terroso,

Submerso, da minha vida

Inteira afogado.

 

O destino cumprido,

Que tu, minha morte,

Ao impor o meu fim,

Far-me-ás realizado.

 

Hei-de estar calado.

Não vou nem mais vão

Falar sobre mim.

Para mim, então,

jamais.

 

No entanto, os meus ouvidos

Serão duas flores abertas.

Para o céu. Para Ti.

E da minha boca,

Se ouvirá apenas um som:

O da terra.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Prosa Quebrada (O cortador de nuvens)


Prosa Quebrada (O Cortador de Nuvens)

Eu moro na parte mais alta da aldeia
e a minha bicicleta é azul celeste.

Quando eu monto nela
e atravesso a freguesia na beirinha da estrada,
quase a cair de tão na beira que é o meu caminho,
o meu azul se junta com o azul de fundo,
o do céu.
Mas só para quem me vê lá do outro fundo,
o da aldeia.

E é lá em baixo que vejo uns olhinhos.
Olham para mim, para cima.

É criança, e diz:
— Olha! um menino montado no céu a voar!

Diminuo o voo, todo bobo por ter sido reparado.

Mas criança é esperta, e logo logo repara demais:
— Mas tem roda à frente e atrás! Cruzes! para que servem?
Sou menino de outras inteligências, e explico:
— Não são rodas, observe: é meu cortador de nuvens!

A criança arregala os olhos de espanto,
parece filósofo.

Senta-se, pega uma tangerina
e põe-se a descascá-la num canto,
sem me tirar do seu dia,
um olho em cada roda, muito concentrado.
E pede-me, cheio de sabedoria:

«Deixas-me dar uma voltinha?
Dou-te um gomo fresco tão doce
que vais desistir do voo
e nunca mais hás-de tirar os pés
do chão da freguesia!»

Desci até o fundo da aldeia
e emprestei-lhe a bicicleta.

Já se passou muito tempo,
mas ele ainda voa lá por cima
a cortar nuvens mais frescas
que o gomo de tangerina
que ele me deu.

Não tenho pressa.

Quando criança cisma de voar,
não há quem derrube!...

Nem tangerina que dure
o tanto de nuvens
que é preciso cortar.