
Fui de manhã cedo à Arouca resolver umas questões relativas à música, mas não consegui bom termo. Não encontrei quem precisava encontrar. O que consegui foi remarcar o encontro para sábado a noite. De qualquer forma, aproveitei a manhã na vila para dar continuidade à leitura do
Diário Volúvel, do Enrique Vila-Matas.
É um bom diário, tanto pela forma quanto pelo número de referências. Uma delas: Rachel Seiffert, escritora nascida em Oxford em 1971 e que se estreou com o, segundo Vila-Matas, notável The Dark Room – em Portugal «A Câmara Escura», da Quetzal Editores. Encontrei um comentário do Francisco Neves na «Mil Folhas» (Público), e que parece ter sido escrito em 22 de Junho de 2002:
«Num livro surpreendente, uma berlinense de 30 anos enfrenta as culpas e a memória (...) histórias de alemães comuns (que) criam um livro fortíssimo e provocante (...) onde a tensão subjacente cresce e se desenvolve até ao final.»
Seiffert mais tarde publicou, ainda segundo Vila-Matas, «contos geniais de prosa sóbria e muito poética», agrupados sob o nome Trabajo de Campo. Anotado. Fiquei bastante curioso e já andei em busca de algum material sobre a autora.
Mais adiante encontrei algo que merece menção tanto pela curiosidade quanto pela minha absoluta concordância. Uma alusão a Montaigne, o qual dizia que a teimosia constitui o sinal mais nítido da estupidez. A descrição encontrou associações mnemónicas imediatas na minha alma.
Outra citação, agora do La Escafandra, dos Diários de José Carlos Llop: «As nuvens passam como exércitos mesopotâmicos». Tocou-me profundamente por me recordar as tardes que passei sentado numa cadeira de balanço no quintal da casa da minha avó, quando ela ainda vivia no Brasil, a olhar para as nuvens por entre as folhas de uma antiga amendoeira que lá havia. Li a frase, fechei o livro e vi nitidamente o exército mesopotâmico a passar na minha memória. Para quem não passou uma tarde destas, tardes em completa ociosidade e paz observando essa obra de arte que é o céu, e não tenha ficado passivo, ou melhor, receptivo ao ponto limite da realidade, pode achar que essa frase não seja grande coisa. Mas sou testemunha ocular em defesa do Llop: «As nuvens passam como exércitos mesopotâmicos»
Saboreei tanto a frase de Llop que acabei por saltar os nomes de dois poetas que fui descobrir ainda na distância dos primeiros contactos: Charles Simic e John Ashbery. Ambos são descritos no Diário do Vila-Matas sob a citação de um artigo (o qual acabou por revelar Simic ao autor) de Martín López-Veja:
«É muito possível que não haja na poesia norte-americana de hoje, à exceção de John Ashbery (de quem não é exagerado dizer que é para a poesia da segunda metade do século XX o que Eliot foi para a primeira), poeta mais relevante que Charles Simic.»
A comparação de Ashbery com Eliot me fez acender a curiosidade - o que pode ser ruim, pois vou até o Ashbery cheio de expectativas, e como tenho visto tantos elogios absurdos… Outro dia, eu li um renomado ensaísta português descrever certo livro, de um autor também português, como um livro que iria mudar a cultura europeia. Bem, como disse o amigo que estava comigo quando li a tal descrição: pode ser que seja verdade, já que o ensaísta não explicou se mudaria para melhor ou para pior. O livro em questão foi, para mim, decepcionante, apesar de gostar muito de outros livros do mesmo autor.
Voltando ao Simic e o Ashbery, separei duas poesias, uma de cada poeta, para deixar como ilustração:
Eco Tardio (John Ashbery)
sós com a nossa loucura e a flor preferida,
vemos que não há mais nada sobre que escrever.
ou antes, é preciso escrever sobre as mesmas coisas de sempre,
do mesmo modo, repetindo vezes sem conta as mesmas coisas,
para que o amor continue e a pouco e pouco vá mudando.
colmeias e formigas têm de ser eternamente reexaminadas
e a cor do dia aplicada
centenas de vezes e variada do verão para o inverno
para que o seu ritmo desça ao de uma autêntica
sarabanda e ela aí se feche sobre si mesma, viva e em paz.
só nessa altura a crónica desatenção
das nossas vidas nos poderá envolver, conciliadora
e com um olho posto naquelas longas opulentas sombras amareladas
que falam tão fundo para o nosso mal preparado conhecimento
de nós próprios, máquinas falantes dos nossos dias.
- John Ashbery - Uma Onda e Outros Poemas
(Quetzal Editores – 1992).
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Os prazeres da leitura (Charles Simic)
No seu leito de moribundo o meu pai lê
As memórias de Casanova.
Eu vejo a noite cair,
Algumas janelas que se iluminam na rua.
Numa delas uma jovem lê
Junto ao vidro.
Há muito tempo que não ergue os olhos,
Mesmo com a escuridão a chegar.
Enquanto ainda há um resto de luz,
Desejo que ela levante a cabeça,
E eu consiga ver-lhe a cara
Que já consigo imaginar,
Mas o livro deve ser intrigante.
Além disso, que silêncio,
Cada vez que volta uma página,
Consigo ouvir o meu pai, que também volta uma,
Como se eles lessem o mesmo livro.
- Charles Simic - PREVISÃO DE TEMPO - PARA UTOPIA E ARREDORES
seleção e tradução de José Alberto Oliveira (Assírio & Alvim)
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