terça-feira, 1 de novembro de 2011

O verniz perfeito

O que fazer com a saudade? Amanhã é dia de memória concentrada nos mortos. Quem não tem os seus? A minha família é uma multidão de falecidos enfileirados daqui até a eternidade e numa dessas filas tenho o meu lugar vago. Até quando? Quem está atrás e estará à frente? Escrevo com milhares de dedos. Dedos sujos de terra; dedos magros, gastos do tempo de mais; dedos que foram à boca em ordem de silêncio; dedos nas cordas cor de vinho de um violão rural; dedos de Volfrâmio; e os dedos de madeira que me fizeram, dedos manchados do verniz que aplicamos na reforma de um violão. Pai, eu não sabia que a lixa a remover o velho verniz era uma metáfora da vida. Demorei muito a fazer música. Eu não percebi que a madeira crua e aplainada podia refletir o meu rosto. Eu acreditava que já era capaz de cantar aquele meu presente, mas como? Com um violão inacabado? Há uma cena no eterno. Estamos os dois em pé e meio trabalho adiantado sobre a mesa. Tens os dedos sujos de verniz, mas não trabalhas. Deves ter andado a me ensinar como se faz, pois sou eu que seguro a vasilha do verniz com ambas as mãos. Mas espera, aonde vais? Abandonas-me assim? Eu sei, é preciso. Soube quando já ias ao longe e viraste a cabeça para trás a sorrir adeus. Agora sou eu que vou adiante no trabalho. Sabes, pai? Foi preciso diluir uma lágrima para o verniz perfeito. Assim não se enxerga muito bem e a voz não sai grande coisa, mas vou cantar uma música. Vou cantar uma música e vais me ouvir aí no invisível onde vives.

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