sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

O teu relógio em pedaços

Não mexas nas cobertas, deixa estar. Este calor é nosso, fomos nós que o fizemos nascer deste encontro que nos elevou acima do tempo. Estamos aquecidos desde a origem do homem: é um calor ancestral, herança nossa. É como dar às mãos um só e mesmo corpo. Lá em cima está frio. Que seja assim. Não precisamos de muito espaço, além deste, em baixo das cobertas, onde dividimos o mesmo alimento que é a nossa respiração compassada, música das gerações, génese do amor. O teu relógio deve estar aos pedaços, no chão, perto da cómoda. Que belo gesto foi aquele que fizeste! O tempo dispensado a sobrevoar os lençóis, o impacto das horas, horas quebradas com estardalhaço de encontro à solidez inútil do que não nos interessava. Tornou-se um relógio sagrado, oferta dos segundos tão intensos desta nossa invocação da sensibilidade. Toda a nossa intenção estava apontada para os olhos de fome um do outro. Solidez? para quê? Era só desejo de misturarmos o nosso espírito invisível, sensibilizado ao máximo para enfatizar a vida. Fome de sons, sede da tua pele inesgotável, e a satisfação final numa única dose de cansaço para dois. E silêncio. Não mexas nas cobertas. Lá fora há apenas o espaço frio onde as horas têm de ser contadas. Lá fora é preciso sobreviver, mas aqui não: enquanto houver calor, e pele que o atravesse, estaremos suspensos na eternidade que nos é devida. Deixa estar o tempo em pedaços.

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