quinta-feira, 17 de abril de 2014

Enamoramentos e primavera

Abri «Os Enamoramentos» do Javier Marías e engoli com os olhos 100 páginas de uma só panelada sem me engasgar. Não houve ponto final nem término de capítulo que me freasse a gulodisse. Mas aí o sol resmungou uma violência qualquer diante da minha indiferença e encostou-se ao meu lado na esplanada do café. Fiz uma pausa — pensei na possibilidade de uma indigestão mnemônica com o enredo descendo-me assim todo de uma só vez e para mais com o sol bruto a lascar-me a telha. E foi aí que reparei no mundo (tinha-me esquecido) e ouvi o grito ardente da primavera. Chegou. Agora a sério, creio eu. Faz sol com força e não há canto da aldeia que não se tenha iluminado e aquecido. Os melros flertam a vontade e pipocam, negros, com seus bicos cor de laranja, sobre a relva; os pardais tecem teias invisíveis no ar do largo de um lado ao outro; brotam turistas dos fontanários; flores misturam-se, mestiçam-se pelos canteiros e eiras; e eu começo já a estar adiantado na estação e a sentir-me deslocado nos meus lugares de costume, conforme sempre me sinto no verão — que há de vir em breve. É assim. Tenho de ceder a aldeia para os de fora, afim de fomentar o turismo e o progresso de uma temporada. Depois retrocedemos todos, e retomo-a de volta. Por enquanto há vida a crescer, cheia de juventude, por todos os lados, e os bichos e a natureza nascentes descobrem que têm mais força do que imaginavam. Oxalá nós também, que já estamos aqui há tanto e às vezes nos esquecemos desse pormenor.

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