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domingo, 16 de fevereiro de 2014

Tenho dois países e tanto dentro de mim

Eu tenho uma alma. Vive no meu corpo, e junto dele faz o que eu sou como indivíduo. E tenho um lugar: o Largo de Trancoso. Se não estou aqui, é onde a minha alma e corpo haveriam de estar. Se estou, é e não é o que deveria ser. Meu espírito não tem pouso. É que o meu largo tem três quartos dele que ficam na minha imaginação, é a porção maior, que vitimou-se da minha memória. O largo de Trancoso, o largo duro, de pedra e alvenaria, esse um quatro, fica em Alvarenga, que é uma aldeia e no entanto não como as que costumam figurar em nosso imaginário. Há banco, mercados, restaurantes, cafés, empresas, e assim. E há também o Rio Paiva, que é um dos rios mais limpos da Europa; há montanhas, e nelas pinheiros e eucaliptos e vegetação para mim misteriosa. No segredo noturno das ruas, há sonoros e palradores cães; no alto e em pares, corvos enamorados que desenham corações que vou seguindo com os olhos e fechando-os com um laço de sorriso breve; sob a neblina das noites, corujas melancólicas, que amam a melancolia a ponto de não a saberem; e a pisar em pinhas e folhas, raposas solitárias de olhar perdido no mais íntimo dos montes. E mais. Não tenho vida que me baste para o descrever minuciosamente. Sou um tolo dos fragmentos. Um tolo que cisma de os agarrar e de os ver escorrer por dentre os dedos. E que sai todos os dias em busca de mais. Mas não tenho pouso. Sou dois olhos que vão pairando sobre a aldeia e a cidade, sobre um país e outro, dois países que são meus, e tudo o que vejo faz parte de mim. Então, que ninguém repare se me encontrar um pouco nos muros de pedras, entre o castanho do tempo e o verde dos musgos. Ou no poste de energia em frente à minha janela distante, duas mãos nos fios de alta-tensão, as pernas balançando e os calcanhares tocando o emaranhado de fios; ou entre as duas serras da vista dessa janela, sob o sol escaldante de um olhar que esqueci de pegar de volta e lá ficou para sempre, lá, aqui. Como hei de pensar no de onde eu sou? de onde? se sou de tanto? e se esse tanto é tanto que só cabe inteiro dentro de mim?