É uma criança com uma aura muito antiga, embora eu não saiba a sua idade. Nove ou onze anos? A fala é mansa, algo contida, mas com laivos de simpatia como quem diz gosto de ti. Pele branca e lisa como a das crianças, bochechas que se fazem notar sem escândalo, cabelos bem curtos, óculos estreitos, e vestia calça de ganga e camisa de linha castanha-quase-cinza com listras horizontais finas e brancas. Levava uma pequena bolsa preta a tiracolo.
E passou por mim deixando uma pequena saudação, explicando que ia à casa e que depois seguiria na mesma direção que eu: Trancoso. Não foi o André que me saudou. Não exatamente. Foi toda a perfeição da minha infância que me sorriu e prometeu retorno. O rosto do meu primo tem a propriedade de transmitir a idade serena, e contém infâncias inteiras a fazer lume atrás dos óculos, as infâncias de todas as pessoas, a minha em particular e a dele que ainda está no presente, e eu não sabia como gritar-lhe
— Não te afastes dessa idade para sempre, André
como eu mesmo nunca me afastei da minha. Não. Finjo que cresci e deixei para trás todas as idades que mais importam mas é mentira. Continuo a existir eu mesmo desde que nasci e quando me lembro das tardes a brincar no chão da sala sei que ainda sou eu, só que na continuidade do que vou sendo. Eu ainda brinco no chão da sala, ainda há pouco brinquei, enquanto eu vinha para Trancoso e chamei à brincadeira os meus nove ou onze anos de idade que me acenaram desde o rosto do meu primo. Fiz que sim com a cabeça – mas era com o coração, nossas idades reconhecem – e a infância saltou daquele rosto e pôs-se à minha frente oferecendo-me a mão
— Brincas?
e eu confirmei com um sorriso contido no silêncio dos lábios apertados. Aceitei com os olhos alegres que piscavam a perder os anos, uma numeração que retrocedia muito veloz, uma espécie de contagem regressiva, até que me deu vontade de chutar uma pedrinha que me provocava na sua distância de dois passos. Chutei-a para adiante com o meu pé direito e o meu sorriso de lado até que a pedrinha levou consigo a minha infância e para onde eu? eu sei, eu sei, foi para dentro de mim, e ajeitou-se novamente na minha unidade invisível. Tornei a ser esta continuidade que vou sendo na incerteza do até quando. Volto a cabeça para trás e minha vista não mais alcança o André por causa da curva da estrada e do tempo. Já deve ter chegado à sua casa, de certeza. Eu também, pois carrego comigo a minha casa enquanto a natureza mo permitir. Chama-se corpo. Mas só o corpo que tenho neste instante. Já deixei muitos corpos para trás e um dia serei forçado a deixar definitivamente a minha casa, a proteção da temporalidade. Tenho medo que o infinito me esmague com a sua imensidão impossível. Tenho medo de alguns adjetivos: definitivo, por exemplo.
Quando eu já estava quase a chegar a Trancoso, meu priminho passa por mim novamente, mas agora vai na mesma direção que eu. Passa com sua bicicleta e me ultrapassa. Grito mais com as mãos em torno da boca do que com o som
— Vais chegar antes de mim!
e ele apenas sorri durante os breves segundos em que ficamos novamente alinhados no caminho e no tempo.
Fico parado mais alguns instantes, a segui-lo com os olhos na distância crescente. Fico parado no meio do caminho enquanto posso sentir o rasto de vento que a bicicleta deixou para trás.
Crónica publicada em PNETcrónicas.
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