quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Um dia eu acordei sem segredos

gotas de orvalho 6Um dia eu acordei sem segredos. Levantei-me com os olhos fechados e só os  fui abrir na varanda: recebi a paisagem em sua totalidade, uma única dose. O cheiro dos objetos do mundo invadiu-me o corpo e de repente encontrei-me no meio das coisas. Provei todas as cores, todas as sombras que se despediam levando com elas a noite, deixando para trás um véu a dizer até logo, estive só a mostrar-te que um dia morres. E no entanto tudo isto era uma sublime demonstração de vida, que esta dura mais que o morrer. Morre-se apenas uma vez, vive-se para sempre nem que seja só na memória de Deus.
 
Toquei na flor húmida e fria que ainda cumpria a missão de ser o depósito do orvalho celeste e ela disse-me ao dedo profano: não é orvalho! mas fragmentos de estrelas, e elas dizem: esbarrei no espaço eu que sou luz e se não faço cometas deixo-te meu rasto de brilho e direções — e a flor mostrou-me uma miríade de seres que se dirigiam a ela e colhiam vida para distribuí-la adiante. A recompensa para quem leva a vida é poder usufruí-la sobrenaturalmente, e por isso era possível que uma flor me falasse aos dedos.
 
A vida. O brilho das estrelas permanece cortando o espaço muito tempo depois de já se terem tornado pó, partes de luz que atravessam o universo estendendo véus. Apontamos para o céu noturno e gritamos é um cometa! tão delicado connosco que evita-nos todo o ruído de rasgar o pano negro do espaço com a sua lâmina de luz e desnuda-se em beleza para se ver (que os olhos são delicados e carregam a beleza num colo aveludado até ao mais fundo da terra pulsante onde plantamos sementes eternas). Foi o meu coração que bateu nas portas do peito a dizer-me escuta! mas fingi não ouvir, ainda não. Gritou-me então basta! não te perturbes muito com uma simples manhã e só assim consenti em desviar os olhos da paisagem um pouco para mim mesmo. O coração reforçou já desacelerado: não te esqueças que o mundo não cabe dentro de ti, não tentes. Só assim o meu dia começou de facto: quando dei por mim no mundo e soube que do invisível alguém também me observava e eu podia jurar que dizia: «Quão belo é um ser apenas humano que se sabe não deus. E é tão perfeitamente humano que erra tentando acertar os contornos de sua humanidade para a tornar visível e transparente. Dei-te um mundo como quem prende à parede um quadro para que perguntes com a boca aberta de espanto quem é o artista? e depois repares com o peito incendiado que a paisagem pintada contém um mundo inteiro. Um mundo onde te encontras em perspectiva e o ponto de fuga Sou Eu».

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