terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Prosa Quebrada (O cortador de nuvens)


Prosa Quebrada (O Cortador de Nuvens)

Eu moro na parte mais alta da aldeia
e a minha bicicleta é azul celeste.

Quando eu monto nela
e atravesso a freguesia na beirinha da estrada,
quase a cair de tão na beira que é o meu caminho,
o meu azul se junta com o azul de fundo,
o do céu.
Mas só para quem me vê lá do outro fundo,
o da aldeia.

E é lá em baixo que vejo uns olhinhos.
Olham para mim, para cima.

É criança, e diz:
— Olha! um menino montado no céu a voar!

Diminuo o voo, todo bobo por ter sido reparado.

Mas criança é esperta, e logo logo repara demais:
— Mas tem roda à frente e atrás! Cruzes! para que servem?
Sou menino de outras inteligências, e explico:
— Não são rodas, observe: é meu cortador de nuvens!

A criança arregala os olhos de espanto,
parece filósofo.

Senta-se, pega uma tangerina
e põe-se a descascá-la num canto,
sem me tirar do seu dia,
um olho em cada roda, muito concentrado.
E pede-me, cheio de sabedoria:

«Deixas-me dar uma voltinha?
Dou-te um gomo fresco tão doce
que vais desistir do voo
e nunca mais hás-de tirar os pés
do chão da freguesia!»

Desci até o fundo da aldeia
e emprestei-lhe a bicicleta.

Já se passou muito tempo,
mas ele ainda voa lá por cima
a cortar nuvens mais frescas
que o gomo de tangerina
que ele me deu.

Não tenho pressa.

Quando criança cisma de voar,
não há quem derrube!...

Nem tangerina que dure
o tanto de nuvens
que é preciso cortar.

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