Sentado no sofá, olho para a fotografia pendurada na parede branca. Família — explicaram-me há dois anos; em seguida, deram-me os nomes para que existissem um pouco mais. Mas a fotografia desaparece, a parede desfaz-se, eu atravesso o branco do tempo e voo em direcção ao passado, de encontro a uma recordação. O grupo de amigos com os quais eu andava há 8 anos pelo Largo do Machado, Lagoa, Laranjeiras, um roteiro que fazia e passava pela casa de alguns deles, com eles. Depois dos eventos no Parque Laje, Floresta da Tijuca ou Laranjeiras, seguíamos a pé e parávamos num bar que ficava num largo (na Glória?), bar que não sei mais encontrar e do qual esqueci o nome — se é que o soube. Sentávamos na esplanada e bebíamos vinho, água, fumávamos. Mas, e principalmente, ríamos muito, na maioria das vezes de nós mesmos ou uns dos outros. Eram amigos de ironia muito fina e diálogo muito atraente, ágil.
Numa dessas noites, eu e mais alguns deles, alegres da nossa comédia pessoal, fomos dormir na casa de uma amiga que estava ali connosco e morava na Glória. Chegamos à casa. Ouvimos música, vimos os seus álbuns de fotografias, conversamos. Era tarde. Era madrugada, e resolvemos dormir. A mim, calhou-me uma rede pendurada no meio da sala. As luzes foram apagadas e a amiga foi para o quarto, mas antes encheu-me de cuidados — uns chinelos que me coubessem, roupas para dormir, olhos brilhantes de sorriso e carinhos nos meus cabelos compridos — e só depois se foi deitar.
Enternece-me uma lembrança. Grandiosa lembrança no seu detalhe, na sua pequenez, no que tocou de minha finitude e a fez transcender. Amiga. Tão querida. Lembrei-me subitamente de uma coisa que ninguém sabe, se calhar nem tu mesma. Mais tarde, já quase de manhã mas ainda noite, eu ainda estava acordado por conta de dois ciscos de insónia que apanhei nos olhos. Então ouço os teus pés. Vais a cozinha beber água, ouço tudo. Finjo dormir para te ouvir melhor. Os teus cabelos loiros passam pela sala para ires de volta para o quarto, mas no caminho reparas que os meus pés estão para fora do lençol. Eu que os pus assim, mania minha de liberdade e frescor. Muito lentamente — a respiração presa, eu senti — cobriste os meus pés com um afofar das mãos, com muito cuidado, com dez silêncios nas pontas das unhas. Ergueste o corpo. Puseste uma das mãos na cintura e a outra a coçar o sono da cabeça; olhavas para mim. Nos meus olhos eu tinha uma finura entreaberta para te perceber sem que me notasses. Abriste um bocejo e depois inclinaste o corpo sobre mim. Deste-me um beijo na testa. Um beijo leve, insensível à pele mas de arrepiar em carinho a alma toda. Em seguida, apertaste-me suavemente o pé em adeus e foste para o quarto. Fiquei a sorrir para ti enquanto ias, já de costas para mim, vestida apenas com uma camiseta branca, comprida. Havia um foco de luz âmbar que vinha não sei de onde e pelo qual passaste.
Não sabias que eu estava acordado e foi isso o que mais me enterneceu. Tanto carinho em segredo, em solidão. Não te contei. Não contaste-me posteriormente o que fizeste. Eras mesmo assim, Vi. E tudo isto veio através da parede branca que agora refaz-se rapidamente enquanto saio da rede na tua sala e volto para o sofá da minha. Encanto da memória. Então eu quis contar.
Não te vais lembrar, Vi. Não sei a cor da tua parede nem as fotos que lá tens para o auxílio mnemónico, mas podes reinventar o passado na imaginação. Envio-te outro beijinho na testa, aqui de longe. Tardio em anos, atrasado para o passado, mas actualizado nesta tarde, neste meu presente, no que eu pude.
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