sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Uma fresta no tempo

VelhoteTarde esquisita. Mal-estar, dor de cabeça. Fora o sol que cismou de me arder em especial; apontou um raio, franziu os olhos e pôs a língua de fora num canto da boca enquanto mirava em mim pelo caminho à fora. Acertou-me todos, digo já. E andava eu pela arena da rua quando vejo vir na minha direcção um senhor muito velho, as costas uma curva, engelhado de séculos e de roupas pretas, que era a mesma cor que eu vestia. Pensei em pedir-lhe a informação que procurava e então reduzi passos e emparelhamos no espaço, numa pequena fresta aberta entre a nossa idade. Mas. O senhor ficou a me olhar, sério, rugas moles de pintura a óleo abaixo dos olhos húmidos, duas minguantes. E pensei — De mim até ele, só uma questão de tempo; dele até a mim, é questão de memória. Mas não dissemos nenhuma palavra. Falamos só no invisível, que é onde está em uso o vocabulário da eternidade. Ele seguiu o seu caminho — para trás do meu; caminho de ilusão já que ele, na verdade, está lá à minha frente. Fui adiante e não olhei para trás. Eu ainda não tenho o tanto dele de querer voltar, só o meu muito querer ainda ir.

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