sábado, 30 de março de 2013

Eu, um cão e a ressurreição de um Deus.

lareiraNão, Farruco. Estás enganado. A Primavera não se atrasou, cãozinho. Mas escusas estar aí de sentinela, à varanda. Não vês, meu amigo? Há uma manta de algodão celeste encharcada sob o céu desta Estação. Mais para cima, Farruco: é lá que está o sol, à espera da sua vez. Para a mãe natureza só há necessidades, sem manhas. Aquieta-te, vai. Vamos para junto da lareira, que hoje é Sábado de Aleluia. Dia de revolta contra a traição, quando malha-se um Judas de trapos pelas ruas. «Traidor! traidor!», gritam as crianças com paus nas mãos, o ódio de todos os anjos a sair das suas bocas. Depois, o silêncio absoluto da criação. Cada ser vivo do universo à espera de um milagre. Daqui a pouco, uma nova Estação vai recomeçar: a ressurreição de um Deus! Não entendes bem destas coisas, amiguinho, mas sei que o sabes sem saber, sabes de tudo o que compete a um cão. E um cão, sendo como deve ser e sem hipótese de ser outra coisa, é perfeito: cumpre o destino que lhe coube, nem mais nem menos.

Ouve, Farruco! Fogos de artifício! Os sinos da igreja anunciam para toda a aldeia — são mais de mil anjos batendo asas no campanário: ressuscitou um Deus que foi dado como morto! mas não: está vivo! ainda mais vivo do que antes de ter morrido!

Então, Farruco, vamos juntos contemplar nas achas da lareira a imagem de um milagre. Deixa a Primavera para amanhã. Ou para depois. Hoje o sol é divino, meu cãozinho. Chega-te mais para perto um instante, eu quero perguntar-te uma coisa. Só entre nós: sentes o teu peito a arder como o meu?

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