Há mais de um mês que não chorava pela casa e há quinze dias que o seu choro ecoava pelos corredores do hospital; e quando não pelos corredores, ela com o nebulizador em uma das mãos, com a qual, ao invés de sufocar, aliviava os brônquios da filha; e a outra empastada aos próprios olhos tentando conter aquela fonte que nas mães nunca seca, e a dela há mais de vinte anos. Um ano de lutas contra os dedos da filha que procuravam perfurar o abdômen ferido, e contra o vício dela de sujar um pequeno círculo em torno da cama. A mãe, que cuidava da filha como se fosse o último ser humano em todo o planeta; a filha, que não percebia nada, rosnava, jogava coisas, batia-lhe, mas por causa da incapacidade do entendimento; mongolismo, como a própria mãe chamava. Um mês e mais quinze dias de ausência na casa e ela:
— O que importa o lugar, dane-se!, cale-se!, pois trago todo o peso do mundo comigo. Minha filha está morta, se fosse viva dois mundos apoiavam-se em meus ombros mais a minha filhinha a bater-me, a gritar-me, a jogar-me coisas e a deixar marcas de suor nas paredes, os dedos dela a perfurarem o abdômen ferido e eu a cuidar inventando mil remédios, e eu forte, eu mais feliz, a brigar com o tempo e a esquecer da morte, agora um batalhão de infecções, o pulmão dela apertado, as agulhas cegas inventando veias, as veias a apagarem-se, o nebulizador a cansar-se mais que os brônquios dela retesados, a minha mão que desaba no peito da minha filhinha e a outra que é levada ao rosto quando a represa que tenho nos olhos arrebenta e tudo entorna, e lá vão eles pelos corredores deslizando a minha filha, a maca que corre no meio da névoa que me entorpece os olhos, eu a despencar, todos os meus anos a caírem de uma só vez, que Deus pusesse o meu pulmão na minha filha, as infecções que eu tomava com gosto como se fosse saciar uma sede de quarenta graus, mas levaram-na e era como se me tivessem descolado a alma, rasgando a minha pele, e o meu corpo a cair, todos os anos de uma só vez, todos os gritos de todas as mães no abismo de minha garganta a embrulharem-me o estômago, danem-se!, calem-se!, deixem-me gritar, deixem-me quebrar todas as macas, passar os limites, as forças, deixem-me correr mais que o tempo e não me custa que este não passe, onde a levaram?, onde está a minha filhinha?, carregaram-na para o centro de tratamento intensivo e devolveram-me no dia seguinte um corpo inerte, os brônquios colados, um corpo estourando, os olhos fechados meu Deus, e as infecções vitoriosas, pior que os dedos a perfurarem as feridas, mais eficazes, pequeninas, invisíveis que os dedos não chegam, eu é que não entro em casa, só quando a minha filha de volta, marcada na cama, no suor das paredes, o plástico do colchão a inundar e eu que não consigo deter já não sei se o colchão ou esta represa, e os meus anos todos não bastam, agora este vestido, o luto a absorver todas as cores do mundo e eu a sumir, a descer o peso do mundo de minhas costas, deixem-me dormir que assim desapareço, deixem a casa lá, o colchão, os panos ensopados, as marcas da parede, deixem tudo e me esqueçam que eu já me tinha acostumado com as feridas, as noites a rezar, os gritos, deixem-me que eu preciso do silêncio, deitem-me, não, não precisa, apenas olhem para o outro lado, procurem a minha filhinha, esqueçam-me uns dias, meses, a eternidade que seja, deixem-me deitar e dormir cinco séculos e não me cuidem, não me chamem, que eu só quero um sonho, não o pesadelo, um sonho, deixem-me sonhá-lo, deixem-me correr no espaço do invisível por detrás da represa dos meus olhos, que ali eu sei nadar como todas as mães do mundo, deixem-me…
(Escrito em 11 de Junho de 2009. Para Silvana, em memória de sua filha.)
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