sábado, 23 de novembro de 2013

Encantador de bichos

Desço de Carvalhais para a estrada. Um cão branco vem ter comigo. Faço-lhe festas. É magro, tem a cara afiada e rebola, talvez para espanar a alegria em excesso que lhe dei. Sigo adiante, o cão segue-me.

No lugar do Paço, outro cão. Minúsculo, preto, tem uma faixa castanha no peito e na cabeça. Aproxima-se, desconfiado, um cotoco de rabo entre as pernas. Ameaço fazer-lhe festas, mas rebola contente e põe-se atrás do cão branco em procissão.

No lugar da Lavoura, mais um. É branco e castanho claro, maior que os outros. Corre na minha direção e para acerca de um metro para abanar o rabo em tremenda aceleração. Solta um som de dengo e contorce-se até o esticão do meu braço para lhe tocar com um cafuné na cabeça. Sigo.

Quando passo pelo caminho da Seara, mais dois. Um cão preto e esticado, como se o seu destino fosse ser por inteiro de uma outra raça e não só a metade que lhe calhou; o outro é malhado em preto e branco e castanho, um cão mole em extensão, sem jeito para alegrias. Juntam-se à caravana. E agora vou pastoreando cinco cães. Fico espantado com a amizade deles. Vão a brincar uns com os outros e, se se adiantam, param e olham para trás para ver onde estou. Então voltam para perto de mim, cercando-me, e espalham mais alegria e confraternização.

Chego no largo de Trancoso, vou entrar no café. Eles se dispersam como se nunca tivessem andado juntos. Desfaz-se o encanto.

Não sei como isso acontece, mas vivo a ser seguido por animais pelos caminhos. Certa vez foi um cavalo. Estava a comer, e quando passei acompanhou-me rente ao muro até o extremo limite do seu pedaço de mundo, que era um campo enorme. Já aconteceu com uma vaca, que devia andar perdida e olhou-me com muita melancolia nos olhos e me seguiu por metade de Carvalhais até que me despachei para um canto estreito e despistei-a. Já aconteceu com gatos, que se foram juntando à minha volta e me acompanhando. E foi tão estanho que até suspeitei da imaginação. Gatos?! mas eram reais, assim como o trabalho imenso que tive para os espantar e evitar assim que o Farruco fizesse deles refeição.

Mas os cães são mais comuns, mais sensíveis ao encantamento. Expressam muito bem a alegria da companhia inventada. Devem ter qualquer excesso de fidelidade sempre a transbordar e precisam de a gastar, ainda que de improviso e rapidamente, para manter um nível razoável, um mínimo para o uso próprio na sua solidão de cães de rua. A natureza não é amiga dos desperdícios. Nem eu, então vinde a mim. Vamos dar mais uma volta pela aldeia. Vamos, façamos mais um milagre. Um milagre sem consequências para além da euforia. Um milagre possível. Do nosso tamanho. Que caiba inteiro na nossa condição.

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