sábado, 1 de março de 2014

Os meus carnavais

Soube quatro dias antes. Sim, do carnaval. Gosto da festa. Por causa dos carnavais que faziam no bairro da minha infância. Quase de frente para a minha casa, montavam um poderoso palanque de esqueleto feito com grossas e disformes vigas de madeira, selado na base com placas de compensado que vinham da madeireira com as faces pintadas de cor-de-rosa. Anos 80, 90...

Lembro-me da preparação da rua, quinta ou sexta-feira antes do carnaval.

Laçavam e dependuravam em barbantes grossos incontáveis tiras estreitas e compridas de plástico colorido (tinham cheiro de plástico novo, como o que se usava em casa para encapar os livros escolares no início do ano letivo). O vento chicoteava as fitarolas. Espiralavam, doidas, horizontais da ventania, a estalar no mormaço: slap slap. Mas só de vez em quando. Quando o vento do bairro suspirava ansioso pela festa.

Durante a madrugada, esticavam fios com lâmpadas incandescentes em zigue-zague, enquanto ilhas de garrafas de cervejas vazias jaziam pela calçada no trajeto que se ia enfeitando.

Lembro-me do cigarro dependurado na boca do «Besouro», entre o cavanhaque e os óculos redondos fundo de garrafa.

(Tarde da noite. Na rua, o som de uma garrafa partida. Levanto-me, vou à janela. O Besouro em cima de uma escada: uma das mãos segurando no último degrau, a outra com o fio das lâmpadas dali até o chão, rabiola de luz prestes a se acender. Ele grita — a luz do poste no meio da nossa distância, ofuscando nossos olhos e impedindo-nos de ver além da ofuscação:

— Vai dormir, Roldãonzinho!

Esboço um sorriso na certeza de que a miopia dele não me vai ver. E volto para cama. Mas não durmo: tento entender o motivo do riso esporádico lá fora, dos sons de escadas se abrindo e fechando. E cada vez que me levanto para ir ver a rua ela é sempre outra, e outra, e outra. É o carnaval que a vai tomando pelas mãos dos homens.)

Carnaval da Alegria, Carnaval do Esplanada e, mais tarde, já para os últimos, Carnaval da Paz. E foi sendo assim chamado para haver contraste com o que foi acontecendo com o passar dos anos, do que se foi apossando da festa, a qual, antes, era apenas uma festa de saltos e fantasias.

Foi a realidade. Foi-se alterando e levou com ela os carnavais da minha infância. A violência apagou as luzes incandescentes, cortou os barbantes e jogou ao lixo as fitarolas e nunca mais foram vistas ilhas de garrafas jazendo nas calçadas, porque já não houve mais preparativos noturnos. A minha rua, apenas uma rua, nada mais. Tiros e balas perdidas, acertos de contas, tumultos e correrias substituíram os saltos e a alegria. Varreram o Besouro, o Moisés, o Renato, o Silvinho, o Pezão. Ainda os procurei nos primeiros carnavais vazios e silenciosos. Fui à janela, mas não estavam lá. Aos poucos, alguns deles foram deixando de estar também no mundo. O Besouro e o Moisés sei que foram levados pela mesma violência que acabou com o carnaval. Foram assassinados. Com culpa? Sem culpa? Não me interessa. Com eles foram-se dois pedaços quase irrecuperáveis da minha infância. E se digo quase é por ainda poder trazê-los de volta, aqui, nesta crônica, que vou escrevendo de longe, sentindo o cheiro do plástico das encadernações, a ouvir o vento ansioso pelo carnaval, a olhar para a luz que há na minha memória e que ofusca apenas os meus olhos, os da minha imaginação. Eu, que também fui varrido, ainda que tardiamente, dos meus carnavais de rua. Mas ainda estou aqui, mesmo que distante. E vos peço licença. Por favor, abram passagem, porque eu trago muitos carnavais comigo.

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