Soube quatro dias antes. Sim, do carnaval. Gosto da festa. Por causa dos carnavais que faziam no bairro da minha infância. Quase de frente para a minha casa, montavam um poderoso palanque de esqueleto feito com grossas e disformes vigas de madeira, selado na base com placas de compensado que vinham da madeireira com as faces pintadas de cor-de-rosa. Anos 80, 90...
Lembro-me da preparação da rua, quinta ou sexta-feira antes do carnaval.
Laçavam e dependuravam em barbantes grossos incontáveis tiras estreitas e compridas de plástico colorido (tinham cheiro de plástico novo, como o que se usava em casa para encapar os livros escolares no início do ano letivo). O vento chicoteava as fitarolas. Espiralavam, doidas, horizontais da ventania, a estalar no mormaço: slap slap. Mas só de vez em quando. Quando o vento do bairro suspirava ansioso pela festa.
Durante a madrugada, esticavam fios com lâmpadas incandescentes em zigue-zague, enquanto ilhas de garrafas de cervejas vazias jaziam pela calçada no trajeto que se ia enfeitando.
Lembro-me do cigarro dependurado na boca do «Besouro», entre o cavanhaque e os óculos redondos fundo de garrafa.
(Tarde da noite. Na rua, o som de uma garrafa partida. Levanto-me, vou à janela. O Besouro em cima de uma escada: uma das mãos segurando no último degrau, a outra com o fio das lâmpadas dali até o chão, rabiola de luz prestes a se acender. Ele grita — a luz do poste no meio da nossa distância, ofuscando nossos olhos e impedindo-nos de ver além da ofuscação:
— Vai dormir, Roldãonzinho!
Esboço um sorriso na certeza de que a miopia dele não me vai ver. E volto para cama. Mas não durmo: tento entender o motivo do riso esporádico lá fora, dos sons de escadas se abrindo e fechando. E cada vez que me levanto para ir ver a rua ela é sempre outra, e outra, e outra. É o carnaval que a vai tomando pelas mãos dos homens.)
Carnaval da Alegria, Carnaval do Esplanada e, mais tarde, já para os últimos, Carnaval da Paz. E foi sendo assim chamado para haver contraste com o que foi acontecendo com o passar dos anos, do que se foi apossando da festa, a qual, antes, era apenas uma festa de saltos e fantasias.
Foi a realidade. Foi-se alterando e levou com ela os carnavais da minha infância. A violência apagou as luzes incandescentes, cortou os barbantes e jogou ao lixo as fitarolas e nunca mais foram vistas ilhas de garrafas jazendo nas calçadas, porque já não houve mais preparativos noturnos. A minha rua, apenas uma rua, nada mais. Tiros e balas perdidas, acertos de contas, tumultos e correrias substituíram os saltos e a alegria. Varreram o Besouro, o Moisés, o Renato, o Silvinho, o Pezão. Ainda os procurei nos primeiros carnavais vazios e silenciosos. Fui à janela, mas não estavam lá. Aos poucos, alguns deles foram deixando de estar também no mundo. O Besouro e o Moisés sei que foram levados pela mesma violência que acabou com o carnaval. Foram assassinados. Com culpa? Sem culpa? Não me interessa. Com eles foram-se dois pedaços quase irrecuperáveis da minha infância. E se digo quase é por ainda poder trazê-los de volta, aqui, nesta crônica, que vou escrevendo de longe, sentindo o cheiro do plástico das encadernações, a ouvir o vento ansioso pelo carnaval, a olhar para a luz que há na minha memória e que ofusca apenas os meus olhos, os da minha imaginação. Eu, que também fui varrido, ainda que tardiamente, dos meus carnavais de rua. Mas ainda estou aqui, mesmo que distante. E vos peço licença. Por favor, abram passagem, porque eu trago muitos carnavais comigo.
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