domingo, 1 de junho de 2014

A velhinha cheia de estrelas

Vi na televisão outro dia uma baiana de seus quase setenta anos. Dizia muitas vezes «graças a Deus»:

«Graças a Deus me levanto todo dia às cinco da manhã e ando duas horas até a esquina onde graças a Deus vendo os meus bolos e salgadinhos há muitos anos sem faltar um dia.»

Uma senhora muito humilde. Dizia do seu trabalho àquela idade fazendo uma singela carinha de satisfação. Trabalhava até às dez horas e depois ia para casa e passava o dia inteiro preparando as muitas qualidades de bolos e salgados que tentaria vender no dia seguinte. E assim todos os dias, há décadas.

Mora em um barraquinho de paredes azuis e janelas de madeira nuas e rotas. Chamou-me a atenção que as janelas não ficassem justas nos quadrados vazados nas paredes, como se fossem quadros tortos, mal dependurados em pregos. Uma casa pobre, mas asseada. Vivia com mais dois irmãos quase da mesma idade e ao menos mais uma sobrinha. Era a única que trabalhava, mantinha sozinha a família.

No final da entrevista, o seu último graças a Deus:

«Deus me dá a oportunidade de preparar cinco tipos de bolos e comprar alguns refrigerantes e poder levar ao asilo um sábado a cada quinze dias, graças a Deus. O asilo fica aqui perto.»

O asilo fica à distância de duas conduções e ela demora cerca de duas horas para chegar lá. Mas ela contou isso muito a contragosto e não disse que se tratava de caridade. Foi a sua irmã quem a denunciou:

«Há mais de vinte anos ela faz isso de graça. Fica preocupada com os velhinhos.»

A velhinha não tinha quase nada em casa. Na sala só havia cadeiras de madeira e uma televisão antiga e desligada, sabe-se lá se ainda funcionava. A cozinha era um cubículo com um fogão, uma mesa pequena e uma pia de cerca de um metro de comprimento. Todas as paredes estavam mal pintadas de um azul celeste igual ao dos tetos das igrejas barrocas. E a velhinha fazia a caridade de tirar um pouco do pouco dinheiro que tinha para preparar cinco bolos e comprar refrigerantes para os velhinhos do asilo...

Comovi-me imenso. E quando conto sobre essa velhinha ainda tenho de interromper a escrita para conter a comoção com um olhar distraído para as videiras do quintal. O vento morno balança as suas folhas. Dois pássaros trocam divergências ou amores ao longe. Um carro passa na estrada lá em baixo e o ronco do seu motor desmancha-se depois de fazer a curva no entroncamento. Mas a velhinha...

Senti orgulho dela ser brasileira, muito orgulho. Tantas dificuldades e mesmo assim ela mantém o seu senso de humanidade intacto. É gente. Digo eu. E creio que o dizem muitos velhinhos de um asilo qualquer perdido em um bairro muito pobre de barro batido do interior da Bahia. Encheu-me de esperança.

Minha velhinha, com todo respeito, agora é a minha vez: graças a Deus que existe gente assim como a senhora. Graças a Deus. Parabéns. Abraço-lhe daqui com imensa força. O seu coração por dentro deve ser da cor das paredes da sua casinha, só que cheio de estrelas. Nenhuma delas torta como as janelas da sua casa. Por dentro do seu coração é só beleza e exatidão. Estrelas e mais estrelas. Tantas. Parabéns.

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