quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Seria o aniversário do meu pai

Meu pai ensinou-me a jogar damas quando eu era ainda bem pequeno. Ganhou todas as partidas por anos a fio. Fui crescendo; no entanto não o vencia. Fiquei tão bom no jogo de damas que ninguém da minha rua queria mais jogar comigo, pois ganhava a todos. Só ao meu pai que não. 
Certa noite, depois de jantarmos, ainda na copa
— Anda cá rapaz, vamos ver se me ganhas.
fechado1Minha mãe lavava a louça na cozinha ao lado e o meu irmão com ela. O jogo estava difícil e demorou bastante. Finalmente, ganhei. Meu pai então olhou pra mim com aquele sorriso de lado, os olhos azuis brilhando e disse
— Agora sim rapaz, aprendeste a jogar.
Eu todo bobo como se tivesse recebido o certificado de um campeonato mundial de jogo de damas. Desse dia em diante meu pai ainda ganhava a maioria das partidas, mas eu também o vencia de vez em quando.
— Mas não me ganhas todas, hein?
Meu pai tinha esse poder dos veredictos, e isso exercia uma enorme influência sobre mim.
Quando eu tinha três anos de idade sinalizava para minha mãe pegar o violão que ficava no guarda-roupa e coloca-lo no meu colo – aquele violão imenso para o meu tamanho – e ficava tocando com as cordas frouxas. Quando cresci o suficiente para segura-lo na posição correta, o meu pai
— A primeira coisa que deves aprender rapaz, é afinar o violão.
As cordas esticaram e depois de afinadas ensinou–me uma valsa. E fui aprendendo sozinho algumas baladas, música pop, enfim, segui adiante. E o meu pai
— Tens que aprender a dedilhar, isto é que é bonito. Blam blam blam não presta rapaz.
Então me dediquei aos dedilhados e depois de um tempo era o que eu sabia fazer melhor. Algumas vezes eu disfarçava e ia tocar o violão no chão, perto da mesa, assim como quem não queria nada, só para ver se conseguia o veredicto. Dava o meu melhor. Um dia ele segredou à minha mãe
— Ele toca bem.
Quando eu soube, adicionei todo contente mais um certificado à minha coleção. Esses veredictos tinham um peso imenso, tomava-os como medida de qualidade máxima. E funcionava assim com tudo. Até com a minha primeira banda, no início
— É só barulho que fazem, a bateria tum tum tum o tempo todo.
Até o dia em ele apareceu inesperadamente no terraço enquanto ensaiávamos. Quase nunca subia até lá, e por isso mesmo nós um silêncio imediato. Ele um sorriso
— Anda, não precisa parar.
Todos da banda a entreolharem-se receosos, pois sabiam bem dos veredictos. E o medo de não ser lá muito bom depois da janta, no entanto
— Teve uma música que tocaram bem.
E no dia seguinte todos da banda orgulhosos
— O teu pai gostou? Então não estamos lá muito mal, hein?
Nas coisas que eu fazia em silêncio em algum canto da casa, concentrado, vez ou outra percebia o meu pai a se aproximar: olhos azuis, sorriso de lado, mãos juntas atrás das costas, o olhar apertado. Se ele mantinha o sorriso e se distanciava sem dizer nada eu sabia que a coisa ainda não estava boa, mas já andava o veredicto a caminho.
Quando eu fiz o melhor de tudo e chegou a minha vez de ser pai já havia cinco anos que ele tinha morrido. Ainda assim, na primeira noite de natal da minha filha, enquanto ela extasiava-se pelo chão com os presentes, eis que levanto os olhos e tenho a visão do meu pai ao pé da porta: observava a minha filha, com o mesmo olhar brilhante, feliz, mãos juntas atrás das costas. Sacudi a cabeça de um lado para o outro, mas ele ainda permaneceu lá por alguns segundos. Levantou a cabeça, olhou-me sorrindo com os olhos azuis mareados e os olhos diziam-me
— Ai, que linda a menina…
Eu que só consegui dizer para a visão que já se desvanecia (o meu sorriso igual ao adeus do dele)
— É pai, eu sei… eu sei…
e foi tanto o que eu disse com esta frase.
Hoje seria o seu aniversário, pai. Não posso mais lhe dar as meias ou os pentes que mandavam da escola e a minha mãe não pode mais comprar as camisas de botão que usarias no próximo domingo. Mas ainda consigo sentir o cheiro do creme de barbear, da loção pós-barba, lembrar da careta daquilo a arder na pele e imagina-lo vestindo o jaleco laranja com um touro azul bordado no bolso
(Açougue Jardim Esplanada Ltda.)
Posso até mesmo ver um pente do ano anterior guardado no bolso de trás da calça social
— Nunca usou jeans não é, pai?
As histórias que me contava ao fim da janta sobre o meu avô. O meu pai uns olhos azuis que viajavam no tempo a contar
— Só me lembro dele de costas indo embora, quando eu tinha nove anos, depois de me dar cinco tostões na porta de casa…
Histórias sobre o meu avô que morreu com vinte e oito anos, o melhor violonista do Distrito de Aveiro, premiado em Lisboa, enviado pelo exército aos Açores e morto por uma tuberculose que estava agarrada à pedra fria sobre a qual adormeceu numa tarde sob a chuva, esgotado pelas noitadas ao violão.
Tantas páginas do livro da nossa vida e os dedos fazem sempre força para continuar, os olhos mareados, eu é que agora o sorriso de lado, as mãos juntas atrás das costas, os olhos não azuis a brilharem para cima, agradecidos, hoje, 26 de novembro
— Parabéns, pai.
E já que não aparecestes mais ao pé de porta alguma, deixo-te aqui uma confissão torcendo para que no Céu mantenha-se o hábito da leitura. Escrevi um punhado de histórias e poesias, coisas simples, tentativas, mas precisava
— Olha pai, eu continuo precisando dos seus veredictos.
Fazem-me falta. Ora se faz…

2 comentários:

  1. Por essa e muitas outras que o admiro mais a cada dia.

    Parabéns pelo sensível e belo texto.

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  2. Obrigado, Rosana! Você sempre gentil e carinhosa, um tesourinho que encontrei graças ao Facebook.

    Beijinhos.

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