segunda-feira, 3 de outubro de 2011

A senhora do horta

Pelo caminho até Trancoso, se venho cedo, pareço uma metralhadora disparando «Boas tardes» nos alvos simpáticos que vou encontrando. Fui a sensação da aldeia quando cá cheguei: «Ele sempre nos cumprimenta com um sorriso! muito educado e simpático o seu filho, dona Isabel» Mas quase todos os dias eu passava por uma casa cujo quintal tem o muro baixo e uma senhora muito velhinha estava sempre a limpar a horta. Nas primeiras vezes que passei por ali, eu via o alvo e disparava meu «Boa tarde» com uma seta de sorriso na ponta. Nada! nenhum som ou gesto, um virar de rosto, parecia nem notar a minha presença. Mais tarde, descobri: ela é surda. Dentro do seu enorme silêncio só devia caber a horta. Eu estava para lá de tudo: num silêncio mais profundo, dispensável.

Há dias que não a vejo. E estou tão habituado a disparar minha saudação - agora tomo o cuidado de usar os meus olhos como silenciadores - que hoje, ao vir para cá, pensei tê-la visto a cuidar da horta. Mas não: era só um pano grande e preto pendurado num ferro a imitar a forma humana. Disparei em vão. Errei o alvo. Só espero que não seja para sempre; e que ela esteja bem, mesmo que em silêncio, para cuidar da sua horta ainda por muito tempo.

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