Tenho me lembrado do senhor Daniel, já falecido. Nordestino de grande porte, ossos longos, ombros largos, rosto afilado, e óculos grossos. Ele enchia a minha imaginação com as suas memórias. Afirmava ter conhecido e enfrentado Lampião — já não sei em qual ordem. Viu também Maria Bonita, mas de longe: mulher de beleza, forte, corpo todo coberto e ainda assim — ou por isso — de carne e mito desejáveis.
O senhor Daniel era homem brusco, de palavras curtas e palavrões compridos. Vejo nitidamente o seu instantâneo, a sua foto Polaróide no eterno, na qual ele está para sempre sentado no bar da dona Maria, sem camisa, e bebendo algo que não sei. E me chama
— Vem cá, 'rondonzinho'!
para me contar pela milésima vez que soldava os próprios ossos com luzes coloridas. Dizia ter feito estudos em revistas especializadas sobre o efeito de cada cor. Quando se quebrava, e quebrava-se muito, creio que pelo que ele bebia e não sei, não ia ao hospital: acendia luminárias com as cores necessárias e deitava luz sobre os ossos partidos.
— Uma vez adormeci e a luz foi demais, por isso este meu braço ficou torto. Põe aqui a tua mão, sente como isto ficou mal soldado.
Por isso tinha muitos defeitos na pele, sulcos
(cores erradas?)
e desvios no esqueleto. As pernas eram arqueadas pelo hábito:
— Já andei muito a cavalo atrás de Lampião. Quando ele me avistava de longe, até sorria para mim. Eu o queria pegar, mas o problema é que eu também o admirava.
Eu cresci, o senhor Daniel morreu. Morreu nada. Há duas semanas que venho lembrando dele quase que diariamente, depois de anos sem que a sua figura me tenha passado pela ideia. Foi-me até difícil evocar o seu nome; durante uns dias, eu cismei que se chamava Nelson. Vai ver que andou esse tempo todo à caça de Lampião pelos sertões do Paraíso. Ou atrás de Maria Bonita em sítios mais apropriados, vai saber?
Então eu vim despachá-lo por aqui.
Vai, senhor Daniel! Arranca de uma vez o lenço da Bonita e depois me conta se o mito condiz com a tua imaginação! Enquanto isso, eu vou ali dentro ver se descubro qual a luz correcta para soldar as partes que ainda me faltam da tua recordação.
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