quinta-feira, 3 de maio de 2012

Um cão posto à chuva

cao2Farruco! empina as orelhas e ouve-me uns instantes na imaginação. Sei que deves estar aí sossegado ao pé da lareira e cheio de mimos que és um esperto e todos sabem, mas tenho que te contar uma coisa. Não conheces esta casa nem a paisagem, mas isso não importa. Conheces a mim, então empresto-te as imagens que te faltam para que esta prosa corrida aconteça pelo intervalo da nossa distância. Não é para virares as pernas para o ar e ficares para aí a te contorceres, não é hora. Ouve. Aqui da minha varanda, eu vejo um cão que vive ali no prédio ao lado. Os donos dele não são como nós. São menos humanos. Acho eu, que nunca os vi nem os conheço. Sabes que eles deixam o cãozinho na varanda dos fundos ainda que chova? Ah! então agora puseste a cabeça a girar como quem procura uma melhor captação do sinal, Farruco? Espantas-te? Pois é, mas não sabes. Ontem a noite a chuva apertou e o vento se indispôs naquela direção. O cão chorava e arranhava as persianas a ver se os donos o livravam do infortúnio. Mas nada. Ainda está lá, para a chuva de hoje e amanhã. Tenho pena dele, cãozinho. Para quê ter um cão se for nessas condições? Nunca vi os donos, mas não devem ser humanos o bastante para olharem a vida abaixo dos joelhos. Olhar para cima ou para frente é fácil e dispensa-se uma grande cota de humanidade para olhar em tais direções. É-se homem assim? Não. Temos de ser melhores que os animais e para o sermos é preciso levá-los em grande conta e inseri-los na nossa responsabilidade quando assim é preciso (quase sempre). Põe-te fino, Farruco! Tens amigos e família, coisa impensável para quem carrega dureza demais no coração. Isso. Enrola-te mais na tua cama e sente o cheiro da lenha ao teu lado. Aproveita a tua sorte. Mas digo-te: se eu pudesse, neste instante, pegava-te no colo e íamos os dois ao prédio ao lado ensinar aos donos daquele cão o valor da vida em todas as suas expressões. E davas aqueles teus latidos tão fortes que fazem-nos duvidar do teu verdadeiro tamanho por debaixo de todo esse pêlo. Agora volta a dormir, meu amigo. Era só isso. Tenho saudades de ti enroscado aos meus pés madrugada à fora. Mas isso é outra conversa, vai. Dorme antes que as brasas fiquem da cor da noite. Dorme.

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