Eu vejo o frio. É branco, cor de névoa. É pesado, mantêm-se rente ao alcatrão. Eu o vou chutando pela estrada com meus pés, irmãos de gelo. Se me distraio, deslizo — sem querer, a gravidade, breve adversária. Vejo o frio. Eu abria a câmara frigorífica do açougue e uma densa nuvem de gelo escorregava e cercava-me as canelas. Treze ou quinze anos? não lembro. A imagem está guardada na eternidade. No eterno, o que importa é o que já passou. Estou diante da câmara frigorífica e uma nuvem de gelo desce e cerca minhas pernas. Olho. O piso de azulejos cor de ferrugem, as portas da câmara pintadas de branco com veios negros onde a tinta havia fracassado para a umidade, assim como os trincos de metal de contorno verde-úmido. Vontade de entrar, de me guardar lá dentro. Cheiro de carne arrefecida, os ganchos mais velhos de metal castanho e os novos de alumínio prateado dependurados, pernas de boi — cadáveres que sustentaram a minha infância. E quase que vou deslizando outra vez. Tropecei nas divagações e fui parar à berma da estrada: erva úmida e salpicada de gelo invisível, gelo que se vai solidificar até de manhã. Vejo o frio nascer. Vejo-o desde o meu nascimento. E o vou chutando com meus pés. O meu passado já é o futuro daquele do açougue, mas os cadáveres foram se acumulando e de qualquer forma já não caberiam naquela câmara frigorífica. Meus pés de gelo. A estrada de uma aldeia. Enfim, casa. Pensei que fosse pisar azulejos de ferrugem, mas não. O piso é outro. O trinco da porta é verde-seco. A vida foi se acumulando em veios por debaixo da tinta branca da minha pele. Quase que o meu deslize na recordação foi demais. Quase que não sei onde deveria estar. Culpa da minha breve adversária, a gravidade. A da memória. Ou desse meu viver tão cheio, que já estava quase transbordando, por distração, como se o viver só de hoje já não me bastasse.
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