sábado, 4 de janeiro de 2014

A cachorra Baleia de Vidas Secas, do Graciliano Ramos

Hoje morreu a cachorra Baleia no romance «Vidas Secas», do Graciliano Ramos, que estou lendo. Morreu a Baleia e a leitura estancou-se-me no fim do capítulo que leva o seu nome. Era a personagem pela qual mais me havia afeiçoado. Mas deu-lhe umas feridas pelo visto incuráveis, paraíso de moscas e chamarisco para os espetões dos mosquitos. O pelo já se havia escorrido quase todo em comichões e tinha o rabo já feito cobra magra e tesa, pelado e transparente. Fabiano, o dono de uma família sem sobrenome, um sertanejo que foi fraco com o policial da farda amarela, que lhe espancou com o cabo do facão e o prendeu uma noite inteira na cadeia sem motivo que bastasse, esse nordestino, o Fabiano, decidiu matar a cachorra para evitar maior sofrimento. Tosco. Fraco. Carregou a arma e disparou naquela que caçou a preá que saciou a fome de todos eles, quando chegaram à fazenda depois de atravessar o sertão aberto em feridas pelas lâminas do sol. Acertou-lhe uma rajada nos quartos, na anca, e deixou-a fugir para ir ruminar sozinha a sua morte sob um cajueiro. Fabiano. Só não fecho em definitivo o livro na tua cara, espanando-o nessa tua barba ruiva e turvando ainda mais esses teus olhos azuis metidos em dois poços, olhos incrustados na pele ressequida e rajada de engelhas, nessa tua face macilenta, porque foi um dos mais belos capítulos da literatura brasileira que eu li. Quero dizer, das coisas escritas por homem, pois, para mim, o melhor da literatura brasileira sempre me chegou através da escrita das mulheres. Bruto. Estúpido. Mas deixo-te fechado dentro do livro digital, a corroer a culpa desse teu impaciente e infame ato. Sinhá Vitória vai ficar ainda algum tempo no quarto, a segurar os teus dois filhos tapando-lhes os ouvidos e cobrindo os dela com os cotovelos, escondendo deles a tua insensibilidade dura como o chão de barro vazado do sertão. Ficas aí, Fabiano, fechado debaixo da tela apagada. Que me desculpe a sinhá Vitória, pois, se calhar, há de ficar com os braços doridos da posição em que a deixei. Que ela se arrume contigo. Pois o belo por vezes é triste. E é preciso pôr a culpa dessa maldade da beleza em alguém, meu caro. E foi contigo que me atraquei, Fabiano. Aguenta.

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