Com pedras e bichos eu sempre tive muita paciência. Mas quando eu era miúdo e ficava impaciente demais com gente, eu ia numa rezadeira. Chegando lá, a mulher, que era uma velhinha muito enrugada, pegava dois raminhos de arruda e passava em mim enquanto sussurrava umas rezas secretas e de grande simpatia nos céus. Eu sentia cócegas, mas eram cócegas sacralizadas e então eu ficava cheio de um silêncio respeitoso. Mentira. Na verdade, eu ficava quieto para tentar entender o que a velhinha dizia. Nunca entendi. Mas os deuses deviam-na compreender porque eu depois ficava menos misantropo e mais sociável. Mas aí os raminhos quebravam-se todos logo nas primeiras passadas e a velhinha dizia-me, espantada: menino, você tem muito olho gordo em cima, tome cuidado! nunca vi uma coisa dessas, cruzes! E depois eu voltava para casa enumerando mentalmente os vizinhos que me poderiam ter presenteado com o raio do olho obeso. E a que vem essa história? Explico. Acho que estou sobrecarregado. Devo ter pego um feitiço por engano quando saía do aeroporto, enfim. Tenho um violão que ficou no Brasil quando da minha ida para Portugal. Durante quatro anos ele esteve no canto da sala, em pé, com as cordas intactas. Mas aí eu cheguei e desde então duas cordas arrebentaram sozinhas, sem que ninguém às tocasse e sempre quando eu estava sozinho, quase me fazendo falecer de susto. E o pior é que a rezadeira, que era muito velhinha quando eu ainda era criança, já deve ter ido para o lugar de ouvir as rezas dos intermediários e fazê-las funcionar aqui embaixo. E agora? quem me vai arrudar? Vou acender incenso, a ver se emagreço o olho que me calhou em cima e que deve ter escorregado com o suor e foi dar no coitado do violão.
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