Uma mulher esbarra em um carro estacionado. Sente o impacto, faz um estalo com os lábios e torce a cara. Vai mais para frente e esbarra de novo. Outro estalo, outra careta. Volta atrás e esbarra mais uma vez. Desiste. Para e fica uns minutos a remoer a situação. Dois velhotes que estavam a assistir as manobras da moça começam a estipular o valor do prejuízo: «Dois mil contos, no mínimo.» E então passam a imaginar uma possível fuga da condutora e pensam alto numa maneira de descobrir o dono do carro estacionado e avisá-lo. Um deles diz que já viu o dono do veículo amassado, que o deve reconhecer se o vir. A mulher sai do carro, atravessa a rua e passa por eles, entra no café. Lá dentro, fala com o dono do estabelecimento e deixa o seu número de telefone para ser contactada por causa do pequeno incidente. Depois volta ao carro, vê o estrago da lateral do seu, entra e vai embora. Os velhotes confabulam, excitados, enquanto suas cabeças seguem a condutora até que ela desapareça numa curva. Mexem muito as mãos e atravessam os dedos. O valor do prejuízo eleva-se e passa já a ser convertido em moeda corrente: «250 euros, no mínimo!» O outro invoca-se: «O quê?! 1000 euros e olhe lá! que isto de pinturas é um absurdo!» Vão até o carro estacionado e passam as mãos no sinistro, acarinham a mossa em toda a extensão. Chegam mais dois, já são quatro velhotes. Os primeiros contam pela terceira vez o que se passou, alisam mais uma vez em polimento a parte amassada e instigam os outros a fazerem o mesmo. Parecem felizes. Os olhos brilham, apesar das sobrancelhas baixas de maledicência e os lábios apertados de contenção moral. Riem-se, um riso nervoso de excitação. Têm história para contar. História que não lhes faz mal, só aos outros. Uma boa história, então.
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