terça-feira, 6 de maio de 2014

Vida após assassinato

Fui assaltado muitas vezes. Parei de contá-las lá pela décima, mas passou em muito. Já puseram armas de fogo em todos os meus lugares decentes possíveis. Nos indecentes não, e ainda bem. E facas, mas estas só quando eu era mais novo e um canivete bastava para a impressão. Sobrevivi. Alguns dos assaltantes não. Por acaso alguns deles eram novatos na anti-arte de roubar e ficavam no mesmo local dias seguidos exercendo o anti-ofício e aí a turma do pedaço ia até lá e dava cabo deles. Quando eu ficava sabendo também ia ao local para dizer o meu 'bem feito' e encomendar a alma do defunto pelos caminhos tortuosos do além.

Vi muitos mortos na rua. Lembro-me do primeiro, que tinha tomado com um tiro bem no meio da testa. Vi a face da morte. Mas ali, na face do morto mesmo. Não me chocou nem um pouco o furo da bala e o sangue esparramado pelo chão. O que me chocou a sério foi o aspecto de um corpo sem vida. Como é evidente! olha-se e tem-se a certeza: está morto, é impossível que não. Agora é apenas sangue, carne e ossos. Ou seja, restos de gente.

Da última vez que vi assassinados foram logo seis de uma vez. Tinha ido à emergência levar o meu irmão que estava de visita no Brasil e havia se cortado no pé com vidro. Enquanto ele levava pontos a polícia foi trazendo corpos em cadeiras de roda e despachava-os onde estávamos enquanto ia buscar mais. Foi nessa noite que vi pela primeira vez um crânio cortado ao meio. Como se tivesse sido dividido por serra elétrica e milimetricamente aberto: corte vertical sobre o nariz que dividiu uma metade dali para a esquerda e a outra para a direita. Viam-se fossas nasais, cérebro, dentes, boca, tudo em duas metades iguais, serradas, uma para lá e outra para cá, presas pela nuca e pescoço como uma laranja aberta mas presa atrás pela casca. E foram chegando mais. Seis corpos, seis bandidos mortos numa perseguição policial. Cada corpo uma morte visível diferente. Nunca mais me impressionei com nada depois do que vi nessa noite. Dessa vez não vi a face da morte, vi o corpo inteiro dela, por dentro e por fora. Carne, ossos: o homem. E um cheiro a sangue coagulado que volta e meia me vaza da memória e ainda sinto.

É triste. Triste porque sempre que via um morto abstraía a maldade, transformava-o apenas em «um homem» e pensava: o que é feito da história dele agora? Nasceu, teve infância, gostou de um doce específico, vestiu determinadas peças de roupa mas gostava mais das azuis, beijou uma menina pela primeira vez em tal época, foi a uma festa e paquerou outra que depois viu com um amigo, esteve em lugares que o marcaram e davam saudade, gostou mais de uma tia que da outra, mas é agora? Que miséria é a morte, que esgota tudo em um instante. Que nivela tudo pela medida do nada. E punha-me a pensar durante e horas depois de ver uma pessoa assassinada: que raio de coisa é esta, a vida? tão fácil de se extinguir.

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