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domingo, 23 de fevereiro de 2014

Pedras de muros de gelo

Silêncio absoluto. Vazios. O frio faz das pedras dos muros pedras de gelo. Pedras absolutas. Antigas. Sem recordações próprias, mas com a memória da nossa passagem, confusa, entremeada ao musgo que as chuvas esqueceram nelas. Memórias agarradas, ali, com medo do sol. Memórias curtas, decerto. Pedras lisas demais. Culpa do vento. E a minha imagem, depois de milhões de outras imagens já esquecidas, a passar por elas. Som de folhas ainda quebradiças, apesar de úmidas. Meus pés. Pés tolos. Repisam as mesmas folhas até que já não estalem mais e sejam apenas uma pasta de cores de outono. Todas as pedras dos caminhos por onde passei já me esqueceram. Quem és? dizem em absurda imobilidade. Então digo não sei. Minto. Passo de novo. De novo. Minto sempre. Mas dentro de mim, em inviolável intimidade, respondo vezes sem fim: sou Sísifo.

Não muito feio, não muito.

— Eu ia me chamar só Afonso, dona Maria, mas aí a minha irmã mais velha sugeriu que fosse Luís Afonso, que ficava mais bonito e tal...
A minha avó:
— É. Até que não ficou assim muito feio. Não muito.

Farruco, um cão conservador.

O Farruco é um cão muito conservador, odeia gatos. Sem ecumenismos ou coisa assim. Outro dia quase fatiou o gato lerdo do vizinho. O raio do gato preto e velho é burro demais. Todo noite senta-se em frente à porta da cozinha, na varanda, e põe-se a ver estrelas ou ratos nas nuvens, não sei, e todo dia o Farruco dá-lhe sebo nas canelas. É uma rotina tão escarchada que antes que eu abra a porta, mas já na iminência de, o Farruco fica na posição de tiro e mal abro uma fresta ele sai em modo espoleta varanda e escadas abaixo, na certeza de trincar o bichano lesado por já saber da exata localização costumeira do invasor. De cada 10 vezes que abro a porta em oito o Farruco faz o gato voar por cima do muro. E safa-se nas outras duas por estar a chegar ou a sair e ser assim fácil dar a meia-volta. É burro mesmo, o gato. E meio lerdo nas fugas, parece que está cheio de ar, inflado, e tem dificuldades com a gravidade, inclusiva com a da situação. Tem cara de espantado, olhar de louco, e o pelo preto todo estufado. Mas há duas noites eu tive de intervir, pois os dois se enroscaram de tal modo no chão que eu só via um tufo preto a girar a bufar a rosnar. Tive de pôr ordem na bicharada. Berrei «Farruco!» e os dois pararam imediatamente e ficaram a olhar para mim. Ainda tive de ter a gentileza de dizer para o gato: estás à espera de quê? foge infeliz! E só aí ele se foi, lutando com a gravidade, inflado, a rebolar na ponta das patas. E ainda teve de tentar o salto do muro duas vezes, enquanto o Farruco o motivava ao pé do rabo. Mas depois disso, já são duas noites de ausência. Será que aprendeu? E até quando se lembrará do aprendizado?

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Tenho dois países e tanto dentro de mim

Eu tenho uma alma. Vive no meu corpo, e junto dele faz o que eu sou como indivíduo. E tenho um lugar: o Largo de Trancoso. Se não estou aqui, é onde a minha alma e corpo haveriam de estar. Se estou, é e não é o que deveria ser. Meu espírito não tem pouso. É que o meu largo tem três quartos dele que ficam na minha imaginação, é a porção maior, que vitimou-se da minha memória. O largo de Trancoso, o largo duro, de pedra e alvenaria, esse um quatro, fica em Alvarenga, que é uma aldeia e no entanto não como as que costumam figurar em nosso imaginário. Há banco, mercados, restaurantes, cafés, empresas, e assim. E há também o Rio Paiva, que é um dos rios mais limpos da Europa; há montanhas, e nelas pinheiros e eucaliptos e vegetação para mim misteriosa. No segredo noturno das ruas, há sonoros e palradores cães; no alto e em pares, corvos enamorados que desenham corações que vou seguindo com os olhos e fechando-os com um laço de sorriso breve; sob a neblina das noites, corujas melancólicas, que amam a melancolia a ponto de não a saberem; e a pisar em pinhas e folhas, raposas solitárias de olhar perdido no mais íntimo dos montes. E mais. Não tenho vida que me baste para o descrever minuciosamente. Sou um tolo dos fragmentos. Um tolo que cisma de os agarrar e de os ver escorrer por dentre os dedos. E que sai todos os dias em busca de mais. Mas não tenho pouso. Sou dois olhos que vão pairando sobre a aldeia e a cidade, sobre um país e outro, dois países que são meus, e tudo o que vejo faz parte de mim. Então, que ninguém repare se me encontrar um pouco nos muros de pedras, entre o castanho do tempo e o verde dos musgos. Ou no poste de energia em frente à minha janela distante, duas mãos nos fios de alta-tensão, as pernas balançando e os calcanhares tocando o emaranhado de fios; ou entre as duas serras da vista dessa janela, sob o sol escaldante de um olhar que esqueci de pegar de volta e lá ficou para sempre, lá, aqui. Como hei de pensar no de onde eu sou? de onde? se sou de tanto? e se esse tanto é tanto que só cabe inteiro dentro de mim?