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quinta-feira, 17 de abril de 2014

Enamoramentos e primavera

Abri «Os Enamoramentos» do Javier Marías e engoli com os olhos 100 páginas de uma só panelada sem me engasgar. Não houve ponto final nem término de capítulo que me freasse a gulodisse. Mas aí o sol resmungou uma violência qualquer diante da minha indiferença e encostou-se ao meu lado na esplanada do café. Fiz uma pausa — pensei na possibilidade de uma indigestão mnemônica com o enredo descendo-me assim todo de uma só vez e para mais com o sol bruto a lascar-me a telha. E foi aí que reparei no mundo (tinha-me esquecido) e ouvi o grito ardente da primavera. Chegou. Agora a sério, creio eu. Faz sol com força e não há canto da aldeia que não se tenha iluminado e aquecido. Os melros flertam a vontade e pipocam, negros, com seus bicos cor de laranja, sobre a relva; os pardais tecem teias invisíveis no ar do largo de um lado ao outro; brotam turistas dos fontanários; flores misturam-se, mestiçam-se pelos canteiros e eiras; e eu começo já a estar adiantado na estação e a sentir-me deslocado nos meus lugares de costume, conforme sempre me sinto no verão — que há de vir em breve. É assim. Tenho de ceder a aldeia para os de fora, afim de fomentar o turismo e o progresso de uma temporada. Depois retrocedemos todos, e retomo-a de volta. Por enquanto há vida a crescer, cheia de juventude, por todos os lados, e os bichos e a natureza nascentes descobrem que têm mais força do que imaginavam. Oxalá nós também, que já estamos aqui há tanto e às vezes nos esquecemos desse pormenor.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Sustos e latidos

O Farruco ouve além dos nossos ouvidos. Então volta e meia se invoca com alguns cães ao longe que só ele escuta e de repente começa a latir dentro de casa. Cada vez que ele late, assim, do nada, a minha avó leva um susto e diz:

— Porra pro cão, que até mete medo!

Lá para a terceira vez, depois do terceiro susto consecutivo:

— Mais um berro e ponho-te lá fora na varanda! Ai, espera.

(pensa...)

— Se eu pôr o cão lá fora aí é que ele não se cala mesmo...

(e constata...)

— Porra pro cão, qualquer dia manda na gente!

sábado, 12 de abril de 2014

Pólen

Esta é a época do pólen. Pó dourado que cobre tudo. Os carros. Casas. Esplanadas. Até o livro que deixei uns minutos em cima da mesa enquanto pedia meu café teve a sua fina camada, quase invisível. Passo a mão sobre a capa e sinto o ouro que vai caindo para o chão. Há gente que sofre imenso nesta época por causa da alergia que têm ao pólen. Espirros. Olhos lacrimejantes. Falta de ar. Ainda bem que eu não. Acho bonito a natureza estender as mãos tão longe e por todos os lados, como se o pólen fosse o seu espírito a pairar sobre a terra. Espírito da vida, extensão, abrangência. Quando varro o pó da capa deste livro faço carinhos no seu espírito. É dourado. Real. Esfrego o dedo indicador no polegar, sinto o pólen. Vejo-o bem de perto. Quantas flores e árvores, quantos pinheiros tão grandes vão nascer de ti?

quinta-feira, 10 de abril de 2014

A conchinha

Havia uma concha escondida na areia da praia, quieta, guardando o som do mar. Mas tinha uma pontinha branca de fora, úmida, descuidada. Ele fingiu não ver. Olhou de lado, feito mau-olhado. Mas o olhar era bom. O mar é tão grande... Cumpre o teu destino, conchinha. Cumpre. Quem sou eu para te apanhar? E esperou pelo pôr do sol.

Horário de verão em Portugal

Nesta época distancio-me mais do Brasil. Com o horário de verão daqui (e o término do daí) agora são quatro horas a mais em Portugal. Durante o ano há períodos de diferença mais amena, de duas horas, três, e há esta violência das quatro. Se são 20 horas no Brasil, aqui já vou na meia-noite. E quando por lá chegam finalmente na meia-noite, aqui já vou nas 4 horas da manhã. Ou seja, não vou. Já fui dormir. Estarei sempre adiantado no saber noticiário. Saberei primeiro de coisas que no Brasil ainda não vão saber por estarem todos ainda a dormir. Mas, curiosamente, esta é a época do ano (a mais longa) em que menos procuro saber das notícias brasileiras ou do que vai acontecendo daquele lado. Como se por causa das circunstâncias, por culpa do fuso horário, como se fosse algo natural como uma hibernação — só que ao contrário, pois aqui vamos na primavera e logo será verão, que é a época menos virtual do ano: estarão todos a curtir a pele ao sol ou sentados nas esplanadas dos cafés e bares até mais tarde, já que, por aqui, com esse horário, o sol vai se pôr quase às 22 horas. Não sei o que fazem com a noite. Metem-lhe a austeridade do horário de verão em cima e ela encolhe-se toda. E eu, claro, estico-me ao sol na esplanada do café. Com livros na retina e dali para dentro. E vejo cores alegres nas pessoas. E braços alvos, nus, tarados pela luz solar que se abriu sobre todos nós. E tudo isso é bom.

sábado, 5 de abril de 2014

Somos feitos do que passou

O grande problema do ser humano não é o futuro, tempo talvez com que mais se preocupe. É o passado. O que se fez e não se pode fazer mais; o que não se fez e deveria ou poderia ter sido feito; ou as possibilidades que só são descobertas mais tarde, quando já não o são. Lidar com o passado, seja bom ou mal. É para isso que o ser humano vive. O destino, que só o é quando já é tarde e mesmo assim nunca deixa de sê-lo. É disso de que somos feitos: de passado. E vamos sendo. Para que a cada dia mais se o tenha. Para que se possa olhar para trás e ter o que ver e ser sempre novo, ainda que não o seja. Nós somos feitos de histórias inalteráveis. Do que nos vai passando.

E se…

«E se...» Frase tão pequena, e no entanto sem fim. A pior já dita pelo ser humano: por significar tanto, mas querer dizer agir tão pouco. Frase infinita.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Sol de um lado

— Ui! está sol aqui deste lado da casa, vó!
— Eu sei. Quando vi fui até praí a correr. Sem bengala.

Pago taxas pelo dinheiro que empresto

O meu pai não guardava dinheiro em bancos. Dizia que era absurdo ter de pagar para usar o próprio dinheiro; dinheiro que, se o pusesse lá, seria na verdade um empréstimo com o qual os bancos enriqueceriam. Dizia que o banco é que nos deveria pagar, e muito bem pago, por esse serviço de enriquecimento de uma só mão que lhes fornecíamos. Qual o sentido em ter de pagar taxas pelo dinheiro que emprestamos para que os bancos ganhem com ele em aplicações? Estava certo, penso eu. Mas não ajo assim. Enriqueço muita gente, desde bancos até governos, e não tenho meios eficazes para contestar o mau uso que fazem da fortuna que lhes vou emprestando. Sou bonzinho, depois perco de vista o que investi. Mas a minha gentileza sempre foi muito bem cobrada. E se atraso no ser gentil pago extras também. Sou capitalista, acredito no capitalismo. Mas será que o modo usual de se ser capitalista está correto? Ou será que eu só financio o capitalismo dos outros, que é o que eu queria para mim?

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Solidão descartável

A solidão é uma escolha, mas nunca escolhas a solidão. Não para que seja o teu lugar quotidiano. Esta é sempre difícil de romper. Escolhe a multidão. Pois desde a multidão é mais fácil: quando for preciso, ou se houver necessidade, basta que te recolhas de improviso. Assim terás solidão na tua medida. Solidão descartável. Que não te fará mal nem vai querer tomar posse de ti. A solidão, se mal acostumada, quer sempre tudo o que houver. Talvez até mais um pouco. Então tem cuidado.

terça-feira, 1 de abril de 2014

Ventania. E um cãozinho tolo que só ele.

Venta muito. Vento que assobia alto de encontro às portas e janelas. Estou na cozinha. A lareira apagou-se. Foi natural. A lenha deu o que tinha de dar, mas perto do fim engoliu para si as poucas chamas que restavam e ficou a abrasá-las ainda por muito tempo. Depois, enfim, cinzas. A cozinha tem duas portas: uma para a frente e outra para o quintal dos fundos. Estamos no alto, acima da estrada e na beira e a meio caminho de um elevado: e a casa vai levando fortes tapas de vento no lado esquerdo da sua cara de alvenaria, na face que dá para o quintal. Estive um tempinho em silêncio, a ouvir tudo isso. E sem querer imaginei a casa sendo arrancada e capotando de lado vale abaixo e adiante. Giros e giros até ser pequena lá onde a vista não alcança. E o Farruco, coitado, latindo desesperado, correndo atrás. Pus-me logo a rir. Cãozinho tão doido, meu Deus. Até em uma imaginaçãozinha tola destas ele faz graça.

sábado, 29 de março de 2014

O que houve, primavera?

Que há contigo, primavera? No Brasil é que a hora e lugar do outono. Em Portugal as flores imploram por um pouco de calor para enfim fabricarem as cores pelas quais ansiamos e temos direito. Trago os olhos cinzas. Como hei de apreciar aquela flor lilás que nasceu à força numa fresta daquele muro ali fora, em meio a uma dureza ancestral? Pedro, o que há contigo? Move os teus braços, espanta todas as nuvens e põe um sorriso em tua face de pedra. Já estou farto de melancolia. Ando saturado com a natureza, que cismou com a sépia. Põe as manguinhas de fora, que já é hora. Já passou. A primavera era para ontem. E tenho pressa.

domingo, 23 de março de 2014

A bomba atômica

O piloto lança a bomba atômica. Lança-a e faz rápida manobra de evasão. Mas segundos depois volta. Ele quer ver o que desencadeou. Quem viu uma imagem dessas tão de perto sem ser vítima? A beleza da explosão de uma bomba atômica, seu esplendor, que é o esplendor da inteligência humana, que só é esplendor quando seu poder ultrapassa e dissolve o limite da existência de todos os outros, poder que extermina gerações, que cancela futuros. Que imagem fascinante! ainda que por debaixo haja gente tanta a morrer. Morrerá mesmo alguém? — pensa. O homem mantém os olhos fixos e o avião na direção do imenso cogumelo que se vai abrindo como uma flor cósmica, como se fosse uma ação divina, a recriação do mundo, só que ao contrário. Pasmo com o homem. Quanto poder. Ele vai. Vai mais um pouco. E não volta.

Não dormi, sonhei

— Meu Deus do céu, cruz...
— Que foi, vó?
— Não dormi nada esta noite.
— Não?
— Não. Foi a noite inteirinha a sonhar! estou que não me aguento.

sexta-feira, 21 de março de 2014

Houve um pequeno atraso

São Pedro esqueceu-se de regar ali uns cantinhos da aldeia e então mandou um diazinho de chuva para terminar o seu serviço terrestre. As flores desses cantos são importantes. Precisam dessas gotas a mais para exercerem a beleza primaveril que delas aguardamos. Então todos os animais se recolheram em respeito e ansiedade. Exceto por um ou dois melros que tinham também o que fazer em certo atraso. As estações vêm assim, aos lances. E dão imenso trabalho para nossa irmã natureza. Não reparem. Em breve tudo há de se acertar e teremos enfim toda a beleza em cores que nos foi prometida desde o despontar da primeira flor sobre a terra. Uma flor que continha em si uma promessa. Promessa que há de se cumprir. Acredita.

Coisa assim, insignificante

Ah, fim de tarde de luz diáfana e azul. Ouve-me. Conta-me um mistério qualquer. Uma coisinha assim, insignificante. Há dias em que só um mistério revelado nos salva das horas inúteis que fomos contando. Ainda que seja só um espanto pequenino, apenas para a súbita descontração do cenho. Vejo no horizonte o que resta desse teu fio azul, fina lâmina que vai cortando o dia em noite. Corta-me. O sol se pôs comigo. Pode ser que se me escape o que dele foi demais e em mim não coube.

domingo, 16 de março de 2014

O imenso São Bernardo

Um São Bernardo vem pela rua, em passos lentos. Meus olhos encontraram nele imenso desânimo. Os cães, em desacordo comigo, tomando o desânimo por arrogância, lançaram-lhe em cima ondas de latidos. O São Bernardo não demonstra qualquer alteração, como se não existissem mais outros cães no mundo senão há muito tempo atrás. Ele vem. Não alterou em nada o seu passo lento, mais lento ainda por causa do seu tamanho. Cansaço animal. Adianto-me até a varanda, vejo-o de cima. Enquanto os cães vizinhos estão no máximo da sua revolta, chamo-lhe. Uma, duas, três vezes. O cão levanta muito lentamente a sua cabeça imensa e olha para mim com a boca aberta e a língua em pêndulo. Ele olha, e são quatro segundos desse olhar. Olheiras vermelhas. Escorrer-lhe pelo focinho o que lhe resta da sua vontade já liquefeita. Não me ouve. Imagino que só vê a minha mímica (anda! segue teu o caminho! anda) e tanto lhe faz. Então estico o braço e aponto o dedo para adiante. Ele baixa o olhar, e esse baixar são dois segundos. Custa-lhe seguir, mas o que importa?, nem pensa nisso. Ele apenas vai. Segue, curvado, como se lhe custasse tanto cada passo. A cabeça baixa; segue indiferente aos latidos, que a esta hora já são os de toda a aldeia. Algumas pessoas já mostraram meias faces por entre as cortinas. Mantenho o meu dedo em riste, feito seta cujo alvo é o silêncio de todos os cães do mundo. Ele vai: lento. Tem a cabeça baixa. Leva dependurado no focinho um único fio de vontade líquida, a balançar. Vira em outra rua e desce sobre pedras de encontro à estrada. O alvo então é meu, conquistei-o, venci. Toda a gente fecha as cortinas e dá tudo pelo fim. Fico ainda um pouco na varanda. Tenho nos ouvidos o prêmio do silêncio animal. Os outros cães entraram. Ele, enfim, desapareceu. Mas tenho ainda aquele virar lento de cabeça na memória, aquela indiferença cansada e já parte de um corpo que não se importa com tudo o mais. Com tudo o que já deixou de existir e que agora é só um pouco que não chega, mas que importa? Esqueçam. Olho desde dentro do meu invisível para aquele olhar. Um olhar que poderia ter sido o meu, mas que hoje foi o de um imenso São Bernardo. Um imenso São Bernardo que no entanto já passou.

sexta-feira, 14 de março de 2014

Um dervixe na aldeia

Ao virar uma curva, vejo adiante, no meio de uma rua cerceada por altos muros de pedras, um senhor já com certa idade a girar com os braços abertos e a olhar para o céu. Como um dervixe. Gira e sorri para as nuvens. Quando me aproximo, ele olha para mim e desfaz o seu êxtase solitário. Sabemos que o modo de o conseguir é sempre em privado. Vou profanando-o com os meus passos e com a heresia dos meus olhos, que estão fixos nele. Ele sorri para mim, o mesmo sorriso que deu para as nuvens. Sorrio também. Passo por ele quase como se o atravessasse. Mais à frente, volto a cabeça para ver o que ele está fazendo. Ele já não está lá. Mas eu sei onde estamos. Estamos em Alvarenga, onde muito é possível.

domingo, 9 de março de 2014

Os domingos de antigamente

Os domingos eram tão bons quando as ruas ficavam vazias e cheiravam a churrasco familiar. Gente nos terraços, lá no alto, em meio à fumaça das churrasqueiras. Copos de plástico sobre os muros. Risos que sobressaiam por cima do mormaço e que de vez em quando escapavam dois ou três andares até o chão. Eram domingos de sol relaxado, de cigarras protagonistas aplainando silêncios, ausência de trânsito, todas as lojas fechadas. Da janela eu via os carros dos familiares chegando com travessas enroladas em panos de prato de domingo, os homens com engradados de cerveja nos ombros, crianças engomadas, de meias brancas até quase o joelho, fitas nos cabelos das meninas, meninos de cabelo lambido em franjas de lado. E a dona da casa que vinha abrir a porta com um copo de cerveja numa das mãos e uma coxa de galinha na outra, dedos e lábios lambuzados. O abraço cuidadoso para não sujar ninguém, dois beijos fictícios, só estalos, sem toques, sorrisos de adultos, timidez de dois minutos das crianças. Eram domingos tão bons. Essa gente toda em churrasco e cervejas e convívio. Não havia internet nem telefones móveis. Só gente de carne e osso, e peles, olhos, lábios. Até para se ser estúpido e mal educado era mais difícil, pois havia os olhos e os punhos do outro ali na frente. Domingo que tive de ir buscar à memória nesta tarde sem cigarras. Nesta tarde sem o cheiro de sal grosso de outros tantos domingos.

quarta-feira, 5 de março de 2014

E veio o sol

E veio o sol. A vista até dói. Mas o espírito, pelo contrário, respira em harmonia depois de tão longa abstinência solar. Entendo perfeitamente o motivo de terem envolvido o sol em divindade desde que o homem é homem. Parece mesmo um deus. Fica ausente durante muito tempo, alheio às orações, mas depois ressurge repentinamente em milagre quando já ninguém mais se lembra do que pediu e a reza já é outra. Ninguém se iluda ou desespere. Um deus, por ser no eterno, não pode ser lento. Lento em relação a quê, se está tudo ali em simultâneo? Nós é que talvez sejamos apressados, porque temos de ter relação com tudo e então nos atrapalhamos com o quebra-cabeça do viver. Mas hoje há um deus no céu. Está ali, em todo o seu esplendor, visível a olho nu. Que milagre! E dá gosto estar aqui, assim, sentado na esplanada de um café, a sentir a sua bênção sobre a pele e a ouvir o corpo todo dizer amém.