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segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Desentender o mais possível

Farruco, estás a ouvir? Não. Eu já imaginava. Sou um pouco outro desde que deixei de viver ao pé de ti. Vejo-te agora só de tempos em tempos, meu amigo. E já acumulei tanta coisa miúda. Juntas parecem figura impossível e não sei se dá para pôr em dia se às tentasse desenformar numa conversa. A tua rotina eu ainda sei. Não deve ter mudado grande coisa. Mas há sempre novidade dentro do que por fora parece repetitivo. No essencial do viver. Como a flor que é sempre flor e nunca a mesma. E por nunca ser a mesma é que ela é. Não entendeste. Eu sei. Esquece. Para quê? Vou seguir o conselho dos teus olhos: é preciso tentar desentender o mais possível. Não abras assim a boca a despejar em mim esse imenso bocejo. Sim sim eu me apresso, sei que vais dormir na tua cama junto às brasas que estão a crepitar na lareira mas já se vão apagar. Eu vim ao sítio da imaginação para te dizer uma coisa, cãozinho: dorme, mas não te esqueças: estou de longe a velar o teu sono. Não só pelo que és, mas também pelo que eu sou se atravesso um pouco da minha humanidade por ti. Dorme. Amanhã acordamos a nossa linguagem comum. Onde nos vamos encontrar? entre os dois vasos de orquídeas do nosso costume. Aposto contigo: vão estar cobertas de orvalho. E vou molhar as pontas dos dedos na manhã.

domingo, 29 de julho de 2012

Tarde dormente

passarosO Farruco está molenga, esparramado sobre o piso da varanda, à sombra dos vasos de Orquídeas e ao som dos pássaros que estão nas videiras. Se lhe faço festas na cabeça, ele fecha os olhos em dormência, lentamente, até ser visível apenas a sua cabeçorra de pêlo negro em confusão de vento. Paro o carinho. Então ele abre um olho na minha direcção, espreguiça-se e resmunga por dentro de um rápido e intenso suspiro. Dou-lhe riso em dois solavancos de respiração e meto nos lábios um sorriso de lado. Volto o olhar para a frente e vejo um pássaro sobre um cacho de uvas verdes e ainda tão pequenino. Ponho-me em silêncio de natureza, que é o meu modo de ouvir o mundo.

domingo, 22 de julho de 2012

Fundo para o meu espanto

cigarro mulherHá duas semanas que não conversamos, Farruco. Não tenho nada de novo para te contar além do meu espanto diante de uma tarde de sol. O vento morno a balançar o cabelo, o carro que faz volta à rotunda com o seu motor que vem e vai em auge e decadência de volume. A mulher que está sentada na mesa ao lado e estuda um grosso livro sobre estética e que se esqueceu  do cigarro na mão esquerda levantada à frente do rosto. Um cigarro cuja cinza é um frágil anzol que foi talhado no tabaco que já ardeu. Quem sabe se para fisgar a atenção que ela precisa. Tudo isto é fundo para este meu espanto, Farruco. Eu me poderia perder do mundo enquanto o observo, se me deixasse levar. Que contradição, meu amigo. E ainda assim percebo que estou no meio disto tudo. Pequena mas imprescindível parte. Para que haja sentido na natureza. Para que haja comoção num homem que por ventura esteja sentado numa esplanada de café.

domingo, 8 de julho de 2012

O touro

A raça bovina Arouquesa foto 147 BRPor que estás a latir tanto, Farruco? Ah! Um touro! É da raça Arouquesa, meu amigo. E que tamanho e força! Olha bem quanta imponência, ainda que esteja perdido a atravessar à frente da nossa casa que não é lugar de costume para essas travessias. Cada músculo a mover-se sem pressa, o castanho claro do seu pêlo a dobrar-se, o toc toc dos cascos a contar distância nas pedras. É um mito de olhos tristes. Deixa-o passar Farruco, pára de latir. Ele há-de acabar num restaurante e um turista qualquer, que nunca o viu, há-de comer a sua carne e refastelar-se em gordura loura e encarnada. Sossega. Ele não está interessado no teu território, cãozinho. Há o muro baixo e as grades para a nossa tranquilidade e que garantem o nosso quinhão da natureza. Lá vai ele, Farruco. Vai dobrar a esquina. Já só vejo a sua cauda num balançar ritmado de pêndulo. Anda cá, meu amigo. És valente. Tu ficas a tomar conta deste quintal da nossa ficção e ele… Eu já não sei até quando. Deixa-me ir escrever sobre o touro, Farruco. Talvez assim, quem sabe, ele possa existir mais um pouco na imaginação dos outros.

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Conversa com Farruco

DSC01082aaOi, Farruco. Tudo bem? Faz tempo que não conversamos. Também já foi feito algum passado com o tempo em que não vamos à varanda fumar um cigarro seguido das festas na tua cabeça e do teu automático capotamento para as cócegas de costume. Tão tolinho. Sempre ris com as patas traseiras em abano, como se fosse novidade e tivesse mesmo alguma graça. É por sermos amigos, eu sei. Lembrei-me de ti, da tua amizade e fidelidade, da tua paciência, dessa tua ausência de maldade humana e da tua memória curta e com apagamento instantâneo para a nossa impaciência. Na minha cabeça não há confusão de espécies, e tu sabes disso que eu já to disse. És um cão, eu sou um homem. Mas é justo por isso, por seres um animalzinho, que eu te posso interpretar e entender com o empréstimo da minha humanidade — o que te cai tão bem por seres inteligente. A ingenuidade é um atributo dos animais. Nos homens fica mal, além de gerar certa suspeita por ser do nosso destino transcender o animal que temos em nós. É um falhanço geral, mas a tentativa da transcendência já nos dignifica a um mínimo possível. Cumpres-te a ti e à tua espécie sendo um animal em perfeição, mesmo quando não o pareces ser por demonstrares mais. Mas nós, seres humanos, não temos hipótese viável: ou somos homens ou bestas. O meio-termo é a degradação de um destino. Mas vou pôr termo à nossa cavaqueira que já são horas e isto de tratar assim a nossa amizade é já coisa do homem que sou. Se fosses tu a puxar conversa era um latido de alegria, pinotes e deslizes de contentamento no ladrilho da varanda e eu a dizer está quieto, seu maluco!, mas com um sorriso de vaidade e um desviar de olhos a explicar para quem estivesse perto «Este cão não é normal», mesmo sabendo que isto sim é que é.

domingo, 6 de maio de 2012

Até para a semana, Farruco

auto20120113-020701aFiquei duas semanas sem vir à aldeia, então o Farruco quase teve um treco no coração de tanta alegria ao me ver. Rodopiou, saltou, latiu, pinoteou e grudou em mim até expulsar a minha para pôr a sombra dele no lugar.

Sempre depois do almoço eu preparava um café e o Farruco punha-se em alerta, sentado ao pé de mim, para ir fumar comigo à varanda da frente e ganhar os carinhos que eu costumava dar com a mão despreocupada. Minha mãe contou-me que, durante estas duas semanas, quando ia preparar o café dela e da minha avó, o Farruco sentava-se ao lado, olhava para cima e para a porta da cozinha e chorava baixinho a sentir falta daquele nosso ritual diário. Depois deitava-se ainda aos choramingos.

Que carinhoso o nosso cãozinho. Comove-me.

Agora, quando eu ia já a sair de casa, ele foi deitar-se enroscado. Voltei. Sentei-me ao seu lado e fiz-lhe uns carinhos lentos como a minha vontade de o deixar. E disse-lhe até logo. Levantei-me. E enquanto fechava a porta de casa a imagem do Farruco também se ia fechando entre o vão. Tínhamos os olhos calmos e fixos um no outro. Inevitável. Tranquei a porta. Desci as escadas entre vento e som de passos. Mas trouxe comigo um pequeno sorriso de comoção; e guardei-o no bolso esquerdo para as necessidades da semana.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Um cão posto à chuva

cao2Farruco! empina as orelhas e ouve-me uns instantes na imaginação. Sei que deves estar aí sossegado ao pé da lareira e cheio de mimos que és um esperto e todos sabem, mas tenho que te contar uma coisa. Não conheces esta casa nem a paisagem, mas isso não importa. Conheces a mim, então empresto-te as imagens que te faltam para que esta prosa corrida aconteça pelo intervalo da nossa distância. Não é para virares as pernas para o ar e ficares para aí a te contorceres, não é hora. Ouve. Aqui da minha varanda, eu vejo um cão que vive ali no prédio ao lado. Os donos dele não são como nós. São menos humanos. Acho eu, que nunca os vi nem os conheço. Sabes que eles deixam o cãozinho na varanda dos fundos ainda que chova? Ah! então agora puseste a cabeça a girar como quem procura uma melhor captação do sinal, Farruco? Espantas-te? Pois é, mas não sabes. Ontem a noite a chuva apertou e o vento se indispôs naquela direção. O cão chorava e arranhava as persianas a ver se os donos o livravam do infortúnio. Mas nada. Ainda está lá, para a chuva de hoje e amanhã. Tenho pena dele, cãozinho. Para quê ter um cão se for nessas condições? Nunca vi os donos, mas não devem ser humanos o bastante para olharem a vida abaixo dos joelhos. Olhar para cima ou para frente é fácil e dispensa-se uma grande cota de humanidade para olhar em tais direções. É-se homem assim? Não. Temos de ser melhores que os animais e para o sermos é preciso levá-los em grande conta e inseri-los na nossa responsabilidade quando assim é preciso (quase sempre). Põe-te fino, Farruco! Tens amigos e família, coisa impensável para quem carrega dureza demais no coração. Isso. Enrola-te mais na tua cama e sente o cheiro da lenha ao teu lado. Aproveita a tua sorte. Mas digo-te: se eu pudesse, neste instante, pegava-te no colo e íamos os dois ao prédio ao lado ensinar aos donos daquele cão o valor da vida em todas as suas expressões. E davas aqueles teus latidos tão fortes que fazem-nos duvidar do teu verdadeiro tamanho por debaixo de todo esse pêlo. Agora volta a dormir, meu amigo. Era só isso. Tenho saudades de ti enroscado aos meus pés madrugada à fora. Mas isso é outra conversa, vai. Dorme antes que as brasas fiquem da cor da noite. Dorme.

terça-feira, 3 de abril de 2012

Morreu o Sebastião

Hoje morreu o Sebastião, o cão do vizinho. Tinha poucos meses. Eu gostava do nome. Era amigo do Farruco, apesar do pai, o Kiko, não gostar da amizade. Diferenças territoriais. E havia mulher no meio, uma cadela, a Tuca, o que é sempre motivo de rosna entre machos. Era branco com duas grandes manchas pretas puxadas à mãe. Deu pena. Era uma alegria infantil e animal aos saltos e cambalhotas na relva ao lado. Eu gostava de ver. Vez ou outra metia o focinho por um buraco na cerca, para vir pegar a dose de carinho que eu lhe dava — para a ciumeira de terror do Farruco. Outro dia escrevi aqui e citei o seu nome entre helicópteros, fogo, e gatos. Morreu. Vai Sebastião, descansa em paz. Nem foi muito o cansaço, que o tempo de vida foi pouco, mas foi o suficiente para estares aqui, na minha memória, neste dia. Então foi vida que bastasse, ao menos para isto.

sexta-feira, 30 de março de 2012

Fogo no fim de tarde

0,,21506418-FMM,00O pêlo negro do Farruco está salpicado de pôr-do-sol. Meteu-se entre dois vasos de orquídeas — uma rosa, outra castanha. A luz de adeus do dia passa por entre as folhas e desenha manchas de ferrugem celeste na sua maciez escura. Farruco nem dá por isso. Está de orelhas em guarda, a cabeça rija na direcção da varanda mais alta da casa da dona Maria José. Os seus três cães — Tuca, Kiko e Sebastião — andam de um lado para o outro a rosnar. Têm olhares insidiosos. O Farruco, muito atento, pensa: «É gato» E põe o corpo em alerta. No entanto, há fogo nos montes da Chã e um helicóptero mete-se na cena a fazer imenso barulho. Traz água ao colo para despejar em alívio. Os cães acompanham toda a trajectória, olham para o céu. Enquanto isso, com habilidade e silêncio de fuga, como se fosse invisível, um gato preto atravessa, retesado, toda a extensão entre o meu e os outros cães. Foi-se o gato. E depois o helicóptero. Os cães deitaram-se, esquecidos. Anoiteceu.

quinta-feira, 15 de março de 2012

Paté de pimenta preta

O vício do momento (fora os outros) é pão com paté de pimenta preta. São as alegrias do Pingo Doce. O Farruco adora e chega a pôr-se de pé, aos choramingos: «Dá-me, dá-me!» Faço que não: «Sai para lá, ô esfomeado.» mas dou-lhe, no ar, no auge de um salto. Já a minha avó: «Porra pra pimenta preta! se eu comia uma coisa dessas... Nunca na minha vida eu vi pimenta dessa cor! Nem deve existir. Sei lá do que isso é feito!» mas comeu: «Olha... Isto não deve matar ninguém, penso eu...» E estamos assim todos viciados e alegres a mastigar e a rir do pouco pão que agora há.

quarta-feira, 7 de março de 2012

Parecenças

A minha avó está na varanda dos fundos a rir-se para o Farruco. Vou ver o que se passa. Ela diz:
— É que este cão se parece muito comigo! como pode?
E continua a rir.
Não sei o que eles estavam a conversar. Nem atrevo-me a saber.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Fazer o dia acontecer

07:50h. Fui ler e tomar café na varanda dos fundos. E como é dia de Carnaval, sentei-me numa cadeira-de-praia para o solar benefício da ilusão. À minha frente, um gato preto com uma cara tão larga que parecia uma coruja. Dormitava, sentado, debaixo de um raio de sol traçado em sombras pelas videiras. A orquestra dos pássaros evoluiu até que muitos deles espicharam por todo o quintal, feito berlindes que escorregam do bolso e caem pelo chão. Entrei. Fui ver o Farruco: tremia que nem vara verde, descoberto que estava na sua cama. Cobri-o, fiz-lhe um carinho de bom dia e reparei que as suas pernas são tão finas como as de uma ovelha. Bom Farruco, que dia tão bonito! Vamos lá fora, cãozinho! tem um gato no quintal que precisa ser posto a correr. E então o dia há-de de começar.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Um cotoco de cauda a acenar amor

Eu disse ao Farruco: «Vai deitar!» Foi. Então eu disse: «Vem cá!» Ele veio. Cismado, repeti: «Vai deitar, Farruco!» Mais uma vez, deitou-se. Fui até onde ele estava e fiz-lhe festinhas na cabeça enquanto ele acenava apressadamente para mim com um cotoco de cauda todo o seu amor incondicional. Um amor inversamente proporcional à minha estupidez de o pôr à prova.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Um carinho em nós dois

A Ursa Maior, tão fácil de encontrar; a Ursa Menor está ali, mais para o lado, tão singela; Vénus exibe seu luzir intenso, fixo, sem o bailado de setas de luz por ser um planeta, quero dizer, um mito; Marte? a confundir, como sempre; tudo isto mais a memória recente do avistamento do céu ao teu lado, memória mais intensa do que todos os luzeiros celestes de mãos dadas. Quantas vezes os nossos dedos comandaram as estrelas desde o nosso observatório privado na varanda dos fundos? Fui até lá agora há pouco e estavam tristes como o Farruco e eu. Não te contei? Hoje ele andou de cómodo em cómodo à tua procura. Parava, meio perdido, em cada um. Olhava em volta e chorava baixinho por não te encontrar. Eu disse não fiques triste cãozinho, e chamei-o para perto de mim. Ele veio muito lentamente, de cabeça baixa. Não quis as festinhas que ofereci e deixou a minha mão pairando no vazio de nós dois. Deitou-se sobre os meus pés e ficou a olhar para o entroncamento. De vez em quando suspirava. Ele não queria, mas fiz-lhe um carinho na cabeça assim mesmo. Na verdade, foi um carinho em nós dois.

(05 de Fevereiro de 2012)

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sábado, 21 de janeiro de 2012

Reza que o sono vem

Farruco está sem jeito na cama. Enrosca-se, levanta-se, arrasta com uma pata o seu tapete de um lado para o outro, dá voltas em torno de si mesmo, os olhos fixos a procurar um ponto certo para a enrosca e que é um ponto invisível, dificílimo de encontrar. Acho que se cansou, coitado. Enfim, deixou a cama e foi deitar-se de barriga no chão e com as pernas arreganhadas para trás. Pôs a cabeça por cima das patas dianteiras, que estão juntas, à sua frente. Deve estar a rezar para vir o sono. Foi a primeira coisa que aprendi sobre a oração
— Mãe, não consigo dormir...
— Reza que o sono vem.
e sempre funcionou. Pai nosso que estais no céu... Ave-Maria, cheia de graça... e Deus mandava um anjo nocturno abrir sobre mim as suas soníferas asas e eu pensava na manhã seguinte:
— Deus existe.
E os anjos, os santos. Sei dessas coisas. De não encontrar uma posição na cama, virar para um lado e para o outro e, por fim, levantar, dar uma volta pela casa, fumar um cigarro na varanda e verificar se as estrelas mudaram de posição enquanto estive às voltas em torno de mim mesmo, a ajeitar com as patas os lençóis e nada; sei como te sentes, cãozinho. Eu só não consigo ficar assim acachapado, como diz a minha avó. Isto de ser humano às vezes é uma seca. Mas fizeste bem, Farruco. Vejo que já estás a ressonar. Eu te disse
— Reza que o sono vem
que rezar resultava. E agora dei comigo a rir sozinho, a imaginar um anjo de quatro patas a estender as suas soníferas e caninas asas inimagináveis sobre ti. Um anjo que tem a tua cara. Vê se pode, Farruco…

domingo, 15 de janeiro de 2012

O galho de eucalipto

DSC01325O Farruco levantou-se da cama quadriculada de sol e sombras e foi deitar-se em cima de um grande galho de eucalipto que eu tinha deixado estendido na varanda dos fundos. Que passos lentos e preguiçosos são esses, cãozinho? A tua sesta foi interrompida por um chamamento: a irresistível aura esmeralda do perfume do eucalipto sobre o qual foste deitar, e que mantinha ainda um pouco de névoa a embranquecer as costas das folhas desde antes do corte. Não, Farruco, não fui eu que arranquei o extenso e magro galho de entre os seus. Já estava estendido no caminho, um caminho de eucaliptos e pinheiros enfileirados, testemunhas gigantes da minha passagem, solitário, a chutar pinhas e a estalar folhas pálidas com os meus passos, sem outra ocupação além da de assistir o espectáculo da natureza convulsionada pelo vento. Vi-me na base de um triângulo sem fim, caminho em linha recta a afastar o horizonte para sempre, a cada passo. E pensei: «Será que o horizonte existe?», mas não era hora para pensar demasiado. Era hora de silêncio expectante. As árvores são instrumentos verticais de sopro para a execução do vento, são flautas dançantes. É tão feio falar durante os concertos. Apenas fui, e não me recordo bem de como nem quando voltei — será que voltei? quanto de mim lá ficou? Lembro-me apenas de ter um galho de eucalipto ao colo. Dorme, Farruco. Vejo daqui os teus olhos fechados. Os pêlos do teu focinho vibraram com um suspiro de desligamento, adeus mundo imenso! Vais sonhar com os montes. Vais correr a procura do mesmo horizonte que eu vi, e que não tem fim. Mas não deixa de ouvir a música, Farruco. Não faças uma desfeita dessas ao vento, que não foi essa a educação que eu te dei.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Uma pretendente para o Farruco

Farruco? Estás em casa? É claro que estás. Eu é que não, mas sei que levantaste as orelhas para a súbita audição imaginada. Minha avó já reparou na tua cabeça a girar para sintonizar melhor a minha transmissão e deve ter dito: «Este cão não é normal...» que é o que eu digo se fazes das tuas. Estás em casa, não podia ser diferente. Deste-nos a tua liberdade em nome do amor. É a única maneira de ser livre. Chamei-te aqui por ter visto uma cadela que te fazia jeito. Eu vinha pela estrada calçado com os meus passos apressados por causa do frio, quando a avistei. E parecia contigo. Fiz-lhe umas festinhas na cabeça e disse-lhe: «Se eu pudesse, levava-te para casa e o Farruco vivia para sempre», mas não posso. Hei? Não adianta esse ensaio de choro, Farruco, nem esse suspiro enquanto mudas de posição na tua cama ao pé da lareira. És um folgado, todos sabem. Agora a minha avó deve ter dito: «Às vezes esse cão mete-me medo, cruzes!» e sorte tua que ela nem imagina esta conversa, senão punha-te logo na rua. Tu, a tua dama e a fileira de Farruquitos daí até o entroncamento. Um dia hei-de contar a história da tua aparição e todos vão entender que parece frieza, mas não é. Por hora continua aí encolhido que já despachei a pretendente. Continua aí a olhar para a lenha a arder e dá-te por satisfeito. Um dia, quem sabe?

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

O meu cão é um amor de pessoa

Pego um cigarro e o isqueiro para ir à varanda fumar e o Farruco põe-se atrás de mim na posição de vou te seguir. Por vezes tento enganá-lo e fico estático, a ver o que ele faz. Não faz. Se eu giro sobre os pés, ele dá a volta para consertar a posição. Não olha para cima, só para as minhas pernas. Depois, eu abro a porta e ele sai comigo; eu sento num degrau, ele ao meu lado. Então eu fumo. Quando termino, ele encosta a cabeça no meu braço e não diz quero carinho, mas eu entendo. Faço. Sinto o seu pêlo gelado que o frio está de corte, mas ele não se importa. Se o deixo aqui dentro e saio sozinho, ele chora com o focinho junto à porta a não dizer abre que eu vou contigo, mas eu entendo. Quando eu abro, ele corre a fazer sons de alegria e dá grandes saltos de fidelidade enquanto eu faço chiu! tem gente a dormir. Mas agora quem está a dormir és tu, Farruco. Vejo uma sombra enrolada na tua cama junto à lareira. Dorme, cãozinho. Eu vou sair na ponta das meias e ver se não acordas, mas antes tenho de contar aos meus amigos:

— O meu cão é um amor de pessoa.

sábado, 12 de novembro de 2011

Entre toucas e procriação

Eu tinha acabado de me arrumar para sair quando a minha avó aparece vestindo sua camisola bege de dormir, um soutien preto por cima da roupa e uma touca também preta metida na cabeça e até o nariz: «Ai! estava aqui a rir-me sozinha! Mas olha que isto aquece bem as orelhas!» e continua a rir-se quase sem fôlego na porta do quarto. Eu pego a mochila, sigo para sair pela cozinha e dou de cara com o Farruco agarrado à cristaleira tentando procriar. Meu dia começou assim.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Vento artesanal

Farruco, não há vento. Olha ali em cima os pinheiros. Vês? não fazem o som do mar esta tarde. Estavam sem ânimo para a literatura e decidiram: durante a sesta vamos ser apenas pinheiros! Sabes de uma coisa, Farruco? Vendo-te aí sentado na varanda, imóvel e sem vento a balançar o teu pelo, lembras-me uma fotografia de cão. Põe-te a andar! vai já para dentro do álbum de família que eu vou até o café. É preciso que alguém meta a cara na paisagem e fabrique um pouco de vento.