sábado, 1 de fevereiro de 2014

Mulher desconhecida

Nem Iemanjá,
vindo sobre as ondas do mar
com seu sorriso de estelas.

Nem todo o sal
que brilha na trama do seu véu
de linhas de horizonte.

Nem seu cortejo de conchas,
batuque de pedras brancas,
rastro de espuma, viração; nada.

Nem o que pudesse imaginar
revelar-se-ia tão belo como
a tua silhueta subindo a praia
depois de um banho de mar.

(tuas mãos torcendo a água do cabelo
gotas eriçando a pele queimada de sol
meus olhos presos no visível do teu corpo
o teu invisível na minha imaginação...)

Não, mulher desconhecida.
Deste ou de outro mundo.
Inventado ou não. Nada.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Folga do espírito

Tarde silenciosa. Olho para o teto branco-gelo, deitado no sofá. A porta da sala está fechada. Escuridão saudável, por estar de acordo com a minha vontade e ser flexível. Bastaria abrir a porta. Se eu a abrir, é a escuridão que sai? ou será que a luz solar é que virá a galope montada no mormaço e tomará posse de tudo, expulsando a escuridão para não sei onde mas com certeza um lugar de esquecimento, até de noite, eu não sei. E tenho preguiça de saber. Então fico aqui, estendido, as pernas dependuradas para além do sofá, balançando, monótonas, num ritmo ancestral. Ser carne. Dei folga ao meu espírito, que hoje saiu só e não disse aonde nem quando volta.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

O meu lugar sou eu

Quando eu ando e olho para o que me cerca, sinto-me estranho. Há uma ruptura. Eu interrompi o fluxo do que aqui se ia acumulando e fui me deixar em parcelas em outro lugar. Lá onde residem as memórias de outros, de antes de mim. Na pátria, isto é, na terra dos pais. Mas se me ponho a pensar. Será que. Não fui eu quem interrompeu o fluxo, eu é que sou o fruto de uma interrupção bem mais grave e anterior. A dos de outro passado em outro lugar. Eles é que vieram e então eu, sofrendo um acidente geográfico, nasci na interrupção que era deles. Depois eles voltaram ao lugar de origem e fiquei eu aqui. E mais tarde eu também fui e pratiquei a interrupção que me calhou. Por isso, a dupla nacionalidade me caiu tão bem. Se olho para os meus documentos duplicados, uns do Brasil, outros de Portugal, sei: duplicados, mas só os documentos. Eu não, mas não sei explicar como não. Uma questão que já me acompanha há muitos anos. Por isso, eu não penso no de onde. Vou sendo um pouco lá, outro aqui. E se posso ser em dois lugares e continuar a ser eu mesmo é por ter em mim esta unidade. Este, o que narra. O que sou e vou sendo, aí sim, sem interrupções, no mais íntimo possível de mim mesmo. Não importa onde, porque o meu lugar sou eu.

Olho gordo

Com pedras e bichos eu sempre tive muita paciência. Mas quando eu era miúdo e ficava impaciente demais com gente, eu ia numa rezadeira. Chegando lá, a mulher, que era uma velhinha muito enrugada, pegava dois raminhos de arruda e passava em mim enquanto sussurrava umas rezas secretas e de grande simpatia nos céus. Eu sentia cócegas, mas eram cócegas sacralizadas e então eu ficava cheio de um silêncio respeitoso. Mentira. Na verdade, eu ficava quieto para tentar entender o que a velhinha dizia. Nunca entendi. Mas os deuses deviam-na compreender porque eu depois ficava menos misantropo e mais sociável. Mas aí os raminhos quebravam-se todos logo nas primeiras passadas e a velhinha dizia-me, espantada: menino, você tem muito olho gordo em cima, tome cuidado! nunca vi uma coisa dessas, cruzes! E depois eu voltava para casa enumerando mentalmente os vizinhos que me poderiam ter presenteado com o raio do olho obeso. E a que vem essa história? Explico. Acho que estou sobrecarregado. Devo ter pego um feitiço por engano quando saía do aeroporto, enfim. Tenho um violão que ficou no Brasil quando da minha ida para Portugal. Durante quatro anos ele esteve no canto da sala, em pé, com as cordas intactas. Mas aí eu cheguei e desde então duas cordas arrebentaram sozinhas, sem que ninguém às tocasse e sempre quando eu estava sozinho, quase me fazendo falecer de susto. E o pior é que a rezadeira, que era muito velhinha quando eu ainda era criança, já deve ter ido para o lugar de ouvir as rezas dos intermediários e fazê-las funcionar aqui embaixo. E agora? quem me vai arrudar? Vou acender incenso, a ver se emagreço o olho que me calhou em cima e que deve ter escorregado com o suor e foi dar no coitado do violão.

Seis por meia-dúzia

E agora esta. Os atendentes de loja e telefone do Rio de Janeiro estão tramados em me irritar. Deram agora para me corrigir o seis para o meia, como se eu fosse um alienígena recém baixado na Terra e ainda não soubesse dizer os números. Não entendo. A cisma transformou-se em hábito? Se digo um dois seis, perguntam-me: desculpe, senhor, um dois? Repito: um dois seis. E eles, em tom de espanto e correção: um dois MEIA, não é, senhor? Digo sim, isso mesmo, seis. E o atendente repete, já sem grande paciência, como se disso dependesse a continuação do nosso diálogo: então é um dois M E I A, não é, senhor? Tento me explicar: querida(o), é seis, mas diz-se meia (dúzia), feito gíria. Eu também dizia assim, mas como em Portugal o seis é seis mesmo voltei chamá-lo pelo nome e não pelo apelido. E aí do outro lado acontece um silêncio. Devem pensar: quem este indivíduo pensa que é para dizer que o seis é seis? E eu, do lado de cá, xingo-os: que burro! isso era lá coisa para questionamentos? E ficamos assim, numericamente estranhados. Não sei o que faço. Só sei que não vou voltar a dizer meia quando tiver de dizer seis. Que ideia. E tenho dito.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

A casa onde cresci

Da janela, eu vejo a minha infância. Ruas que os meus pés cada vez maiores pisaram, até o dia em que minhas pegadas tornaram-se adultas e desde então sempre iguais. Caras envelhecidas que eu conheço desde quando era ainda a juventude que estampavam. A rodovia, sempre jovem, barulhenta de dia e de madrugada pulsações. Mas aqui dentro... Interruptores de luz, os mesmos desde que fui sendo gente. Cada parede sou eu. Vivi na mesma casa desde o meu nascimento até os trinta e cinco anos, então toda ela confunde-se com a minha pele e com o que está daí para baixo. Nesta casa, no Brasil, foi depositada a semente da minha memória. Aqui. Só aqui, talvez, eu possa conversar com o que de mim fui esquecendo. Comigo mesmo, mas não o mesmo. Com aquele que está ali, agachado sobre o tapete da sala, brincando com um robozinho azul e vermelho. Aquele que nem imagina que um dia voltaria ao passado para ver a si mesmo e pensar: quase igual. Ou só quase. Que é a parte da frase que sou eu.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Seu Jão

— É, seu Zinho, o bom filho à casa torna.
— Pois é, seu João. Como vão as coisas?
— A vida é uma desgraça mas a gente se alegra, não é mesmo? Ando pra cá, mais a Maria, às voltas com o aprumo da casa. Obras. Sabe como é, uma lixeira que dói. Mas na hora do descanso o café cai bem. Corpo cansado aceita com prazer regalias. Quando o sol se vai a pôr já fico feliz do café. É aquela história, seu Zinho, antes do bolo pronto a gente já sente o cheiro bom dele e vamos comendo com a imaginação.
— Por falar nisso, tem bolo, seu Jão?
(Maria, traz pedaço de bolo pro estrangeiro — risos)
— Bolo de fubá, você gosta?
— Adoro. Se com café, então, nem se fala.
(Passa um café também, Maria)
— Tá ficando velha, a mulher. É a vida. Eu só não fico velho também porque não me olho no espelho. Mas mulher, sabe, né, se olha toda hora. Sente saudades dela mesma. Vai conferir. Vê cada envelhecimento novo. Explico a ela que não se olhe senão parece mais velha a cada vez, então ela diz que quando olha para o relógio o tempo demora mais para passar. Diz que o tempo no espelho tinha que ser igual. Eu concordo com ela, o tempo é que não.

Simpatia do brasileiro

É um deleite ouvir os diálogos cheios de piadas e sacanices e sorrisos e sentir na pele a boa vontade e a simpatia do brasileiro. Seja conhecido ou não. E tenho exemplos a toda hora. Basta pedir uma informação e lá tomamos com o cuidado de uma mão no ombro enquanto a outra aponta para aonde se deve ir. Mas o apontamento é logo interrompido: «Eu te levo lá, vem» E temos um guia que vai conosco até um ponto do caminho onde já se torna visível o nosso destino, ainda que seja para o lado oposto daquele para aonde ele estava indo. «É ali adiante. Quer que eu te leve lá?» E digo não, não precisa, mas muito obrigado meu irmão. E o guia diz que nada, eu hein. E dá um sorriso e segue mesmo como se nada. Debaixo do sol, a cara engelhada e o suor a estampar as costas da camiseta. E vai. Já me esqueceu a meio, mas eu não. Fico ali parado, pensando: eu faria isso por ele? E não sei. Mas gostaria imenso de ser gente assim.

Crônicas ostentação? que nada.

Pensei que nesse retorno à terra da nascimento eu fosse escrever crônicas de ostentação por estar a viver há quatro anos em euros mas nem pensar. Para viver no Brasil tem de se ser rico. E volto a este assunto por estar realmente assustado. Preocupado com os meus amigos e o que restou de família por cá. Como disse minha amiga Gisele: «Não, a moeda corrente não é mais o Real e sim o Surreal» É moeda de primeiro mundo. Lá em Portugal estamos em crise e, coitados de nós, temos de pagar muito mais barato por tudo. É o jeito. Disse muito bem a Adriana, amiga aqui do Brasil que também está a viver em Portugal: «É mais fácil ser pobre aqui», ou seja, lá. E é. Crise Europeia? depende do modelo de comparação. Eu nasci no Brasil e a crise aqui naquela época já era quase adolescente. Cresceu, está madura e não quer envelhecer. Somos países irmãos, ou pai e filho, mas calhou-nos ter os preços trocados de lugar. Quem colhe o fruto do trabalho em euros não poderia viver de câmbio no Brasil. Só mesmo de passagem, em férias, e com muito cuidadinho para a travessa de comida não ir ao bolso demasiado fundo e abrir um buraco. Não sei o que andaram a fazer com o Brasil depois que eu deixei este país. O que é isso? ou melhor, quem foi? pior que eu sei. E não há nada a fazer, pois o fazer vem sempre tarde demais.

Dia para não ser, mas estar.

Tarde de calor, mas lá fora, onde tudo é a abafar. Aqui dentro, com o vento do circulador de ar a bater-me nas costas e enfiado na sombra das quatro paredes do fundo do apartamento, o dia segue fresco e de cabelos levemente balançados. Tarde morosa, boa para não ser mas apenas estar. Tanta coisa resolvida e ainda duas, as mais importantes, pendentes para amanhã. Resolvo-as? espero que sim. Para eu poder existir no Rio de Janeiro em plenitude e não do lado de trás e através do vidro que o vou vendo. Tenho Portugal às costas a fazer força para o meu retorno válido e com soluções arrumadas na mala. Então, que esta semana fique tudo em ordem para a falta de ordem que eu vou precisar daí em diante. Mas só depois. Calma. Hoje não, hoje é dia de não ser mas apenas estar. Então vou ali comprar pão francês e mortadela defumada para estar melhor.

Jesus em ritmo de rumba

Tenho aqui no Brasil uma vizinha tão crente mas tão crente que a crença dela só funciona à partir do volume máximo e vai até a rouquidão do equipamento de som. Tenho as janelas a tremer com o nome de Jesus em ritmo de rumba, em refrão repetitivo e cheio de força gutural. Jesus, salva-me. Faça o aparelho de som da minha vizinha enguiçar.

Café e coxinha

Saio pela porta do desembarque e deu logo de cara com uma lanchonete ali ao lado. Eu, todo faceiro e pimposo, cheio de saudosismos gastronômicos, vou direto ao balcão pedir uma coxinha e um café. Faço uma manobra arrojada com o carrinho da mala e estaciono meio enviesado, ansioso, em frente ao caixa. Afino meu sotaque carioca e faço o pedido. Aí a menina canta o custo dos meus desejos: tudo, são 11 reais, disse-me. O quê? espera, como assim tudo se esse tudo é só uma coxinha e um café! espanto-me em desânimo, já pensando em reduzir a lista de futuras comilanças de besteiras que eu tinha preparado além-mar. Ela faz então uma cara de quem pensa que raio de pobre é esse que me veio cá comer as minhas iguarias feitas em banha de ouro e às quer de graça?! Enfim, a coxinha custou R$7 e o café brabo R$4! Nem dois minutos em solo carioca e fui logo assaltado. Credo.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Avião e nuvens fotografáveis

O vidro estava sujo das mãos das nuvens, que se encostaram quando espiaram dentro do avião e deram de cara comigo. E então desceram às pressas. Mas não faz mal. Mais uma vez eu vi o céu pelo lado de cima. E o Brasil por debaixo dele. Foi a lâmina-asa que os separou. — (in Rio de Janeiro, Brazil)

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quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Inundação

Chove com se nunca mais. Como se fosse preciso ser tudo de uma só vez por ser a última antes do fim do mundo. No céu, as nuvens rechonchudas dos alquimistas sopram vento de serpenteio d'água e então é difícil fumar na varanda. E se já fosse o tempo de se ir construindo uma arca de jeito? ali para a Garganta do Paiva, de quilha bem forte, que aguente o baque dos fósseis de Trilobites que hão de emergir desde o fundo remexido pela inundação? Na primeira fila dos animais do futuro, o Farruco. Mas como eles têm de subir aos pares, guarde-se então uma vaga para a Tuca, que é a paixão dele e vive no quintal aqui ao lado e que há também de ser salva para haver promessa. Ouviste, cãozinho? um trovão sem luz que o antecedesse! Um trovão sem espanto. Está quieta, imaginação! Cala-te! Eu preciso me concentrar porque o serpenteio d'água apagou o cigarro outra vez. Malditos alquimistas.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

O que é meu?

O solo por debaixo dos meus pés difere dos outros em quê? minerais, vegetação, animais invisíveis? Como devo chamar este chão que piso? Portugal? Península Ibérica? Europa? Planeta Terra? massa disforme que se assemelha a um ovo e faz incansáveis voltas em um espaço tão curto diante de um outro que parece infinito? De meu, os pés? Nem isso. Só por tempo limitado. O mundo inteiro era para ser meu, mas eu desapareço — e o mundo fica. Só é meu o que eu posso levar comigo para sempre. E o mundo não. A memória?

sábado, 11 de janeiro de 2014

Foi o Pai Natal que me deu

Um menino passeia de bicicleta pelo largo de Trancoso. Outro miúdo passa e olha de cima a baixo tanto o menino quanto a bicicleta. Então o primeiro diz, espontâneo: «Foi o Pai Natal que ma deu!» O outro para imediatamente, chega a derrapar os sapatos nas pedras do largo, e sobe os degraus e abraça o pelourinho escondendo meio corpo, deixa só a cabeça em evidência. Olha mais uma vez para a bicicleta e pergunta, cheio de espanto: «Foi o Pai Natal que deu-te?!» O outro balança a cabeça a dizer que sim, foi. Parece mentira, mas foi. E dá mais uma volta com a bicicleta, desta vez uma volta curta, quase um círculo em torno de si mesmo, sempre com um sorriso no rosto e os olhos fitos no menino, exibindo o seu presente. O outro contorce-se de timidez por detrás do pelourinho. Está de costas para mim, não vejo a expressão do seu rosto. Termino o cigarro e volto para dentro do café. Esqueço-os. Achava que sim. Mas agora a noite lembrei desse diálogo, do olhar do menino da bicicleta, do corpo do outro trespassado de espanto, dos nossos instintos todos ali. E vim dizer que sim, confirmo, foi o Pai Natal que deu ao menino aquela bicicleta. Sei o nome dele e tudo, mas não vou dizer. Pai Natal é Pai Natal e ponto. Eu também ganhei alguma coisa, ali, naquele momento, enquanto os observava, só não sei ainda o quê. Mas ganhei.

sábado, 4 de janeiro de 2014

A cachorra Baleia de Vidas Secas, do Graciliano Ramos

Hoje morreu a cachorra Baleia no romance «Vidas Secas», do Graciliano Ramos, que estou lendo. Morreu a Baleia e a leitura estancou-se-me no fim do capítulo que leva o seu nome. Era a personagem pela qual mais me havia afeiçoado. Mas deu-lhe umas feridas pelo visto incuráveis, paraíso de moscas e chamarisco para os espetões dos mosquitos. O pelo já se havia escorrido quase todo em comichões e tinha o rabo já feito cobra magra e tesa, pelado e transparente. Fabiano, o dono de uma família sem sobrenome, um sertanejo que foi fraco com o policial da farda amarela, que lhe espancou com o cabo do facão e o prendeu uma noite inteira na cadeia sem motivo que bastasse, esse nordestino, o Fabiano, decidiu matar a cachorra para evitar maior sofrimento. Tosco. Fraco. Carregou a arma e disparou naquela que caçou a preá que saciou a fome de todos eles, quando chegaram à fazenda depois de atravessar o sertão aberto em feridas pelas lâminas do sol. Acertou-lhe uma rajada nos quartos, na anca, e deixou-a fugir para ir ruminar sozinha a sua morte sob um cajueiro. Fabiano. Só não fecho em definitivo o livro na tua cara, espanando-o nessa tua barba ruiva e turvando ainda mais esses teus olhos azuis metidos em dois poços, olhos incrustados na pele ressequida e rajada de engelhas, nessa tua face macilenta, porque foi um dos mais belos capítulos da literatura brasileira que eu li. Quero dizer, das coisas escritas por homem, pois, para mim, o melhor da literatura brasileira sempre me chegou através da escrita das mulheres. Bruto. Estúpido. Mas deixo-te fechado dentro do livro digital, a corroer a culpa desse teu impaciente e infame ato. Sinhá Vitória vai ficar ainda algum tempo no quarto, a segurar os teus dois filhos tapando-lhes os ouvidos e cobrindo os dela com os cotovelos, escondendo deles a tua insensibilidade dura como o chão de barro vazado do sertão. Ficas aí, Fabiano, fechado debaixo da tela apagada. Que me desculpe a sinhá Vitória, pois, se calhar, há de ficar com os braços doridos da posição em que a deixei. Que ela se arrume contigo. Pois o belo por vezes é triste. E é preciso pôr a culpa dessa maldade da beleza em alguém, meu caro. E foi contigo que me atraquei, Fabiano. Aguenta.

Obrigado

Escrever é a melhor maneira de estar sozinho

(Disse-o Fernando Pessoa, por Caeiro:
"Não tenho ambições nem desejos.
Ser poeta não é uma ambição minha.
É a minha maneira de estar sozinho.")

mas já a pensar no encontro dos teus olhos com o que vou escrevendo. Tenho muitas vaidades, sim, mas de uma delas a culpa também é tua, que lê e gosta, quando o teu dizer desse gostar chega até onde eu estou. E estou aqui, sabes-o bem, a falar contigo desde a minha mais querida solidão, a dizer-te tanto, muitas vezes descobrindo-me a mim mesmo sob o doce relento do teu olhar. O nosso olhar de espanto, tu de um lado, eu do outro, ambos rindo do que eu fui capaz de escrever e tu de entender. Nem sempre é o mesmo entendimento, e é. Não te preocupes, a culpa há de ser sempre minha, que tenho os dedos molhados da ousadia que por vezes se me escapa através de uma fresta na minha timidez. Ouves a tagarelice dos meus sentidos. Sou-te grato. É mágica. Como não? Eu e tu, sozinhos, dentro de um breve momento de escrita e leitura, nessa comunhão de humanidade em que só nós dois participamos. Um por um em par comigo, já que cada leitura é um encontro de cada vez. Estou contigo, e tu comigo. Agora, neste nosso momento de segredo, de intimidade. Vem, lê. Flerta com os meus olhos. Dá-me a mão dos teus. Anda, vamos dar uma volta pelos jardins da minha imaginação. Ou fazer uma breve visita aos meus labirintos. Parecem-se com os teus, não é? qual susto? Somos humanos, os nossos caminhos são os mesmos. Prometo que será apenas um instante. É quanto dura um pequeno para sempre. É quanto me basta. Muito obrigado pela leitura, desde o mais fundo do meu coração. Da raiz dele. Que é onde eu procuro estar quando escrevo. Onde estou agora.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Copacabana e o ano que não terminou

Há alguns anos, eu passei a virada do ano na praia de Copacabana. Depois, nunca mais. Nem Copacabana, nem passagens de ano. Não mais a mesma coisa. Nem Copacabana, nem os anos — nem eu. Quando foi? Não lembro. No ano de dois mil e seus primeiros alguma coisa. O ano que não acabou — como o título daquele livro. Como a vida que vou sendo. Começou ali (meia-noite e um minuto, o céu pipocado de luzes e explosões) e continuou. Continua. Então, toda vez que mudo o calendário é só um novo papel com novas fotos, os mesmos quadrados com os mesmos números dentro e apenas uma alteração: os últimos algarismos que se referem a um novo ano que quase não me diz respeito. Eu preciso renovar o encanto de Copacabana. O encanto do lugar, para que exista em mim com mais força, com atualidade. Quanto às passagens de ano, fica ainda aquele primeiro encanto que perdura na eternidade, um ano que não findou. Findará? Quem sabe? mesmo que sim, para mim, um dia, no dia em que tudo há de terminar, ainda assim, talvez não.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Cachorro pidão

A cozinha está escura (luzes apagadas, exceto pelas brasas que ainda restam na lareira e a claridadezinha do ecrã do computador). Olho para o Farruco. Está deitado no chão, estendido de lado, preto mais escuro que o negro da cozinha. Parece estar dormido. Chiu! ouço-o ressonar bem baixinho. Pego um bom bom e desembrulho-o cuidadosamente para não fazer barulho. Então olho para o Farruco de novo. Ele tem a cabeça levantada e as orelhas em pé. Pidão.

Declaração de amor

Há tempos,
escrevi uma declaração de amor
na areia de uma praia.

Ainda não viste.
 
Ainda não ventou.
Nenhum grão de areia se mexeu.

Estou pasmo com a natureza.
Mais do que contigo.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Dois dias, dois anos

Ontem, 2013; hoje, 2014. Dois dias, dois anos. E tudo isto visto desde a imensidão do universo? A duração de um segundo? um milésimo dele? O que aconteceu de ontem para hoje nos outros planetas do nosso sistema solar? se nem as minúsculas explosões coloridas por entre as nuvens e o azul das comemorações do nosso planeta foram presenciadas, já que não há por lá ninguém para nos assistir? O homem convenciona a existência e dá a ela seu significado. Por vezes, coletivo; noutras, particular; mas sempre a marcar o tempo e a sua passagem sobre a Terra. Para que haja o depois de nós e assim possamos estar também no futuro de quem conta o que foi nosso e no entanto permaneceu. Para não nos perdermos durante a existência fugaz que nos calhou. Para que haja unidade. Por isso, inventamos o mundo. Para que coubéssemos dentro dele. Aqui dentro. E só.

Pequeno incidente

Uma mulher esbarra em um carro estacionado. Sente o impacto, faz um estalo com os lábios e torce a cara. Vai mais para frente e esbarra de novo. Outro estalo, outra careta. Volta atrás e esbarra mais uma vez. Desiste. Para e fica uns minutos a remoer a situação. Dois velhotes que estavam a assistir as manobras da moça começam a estipular o valor do prejuízo: «Dois mil contos, no mínimo.» E então passam a imaginar uma possível fuga da condutora e pensam alto numa maneira de descobrir o dono do carro estacionado e avisá-lo. Um deles diz que já viu o dono do veículo amassado, que o deve reconhecer se o vir. A mulher sai do carro, atravessa a rua e passa por eles, entra no café. Lá dentro, fala com o dono do estabelecimento e deixa o seu número de telefone para ser contactada por causa do pequeno incidente. Depois volta ao carro, vê o estrago da lateral do seu, entra e vai embora. Os velhotes confabulam, excitados, enquanto suas cabeças seguem a condutora até que ela desapareça numa curva. Mexem muito as mãos e atravessam os dedos. O valor do prejuízo eleva-se e passa já a ser convertido em moeda corrente: «250 euros, no mínimo!» O outro invoca-se: «O quê?! 1000 euros e olhe lá! que isto de pinturas é um absurdo!» Vão até o carro estacionado e passam as mãos no sinistro, acarinham a mossa em toda a extensão. Chegam mais dois, já são quatro velhotes. Os primeiros contam pela terceira vez o que se passou, alisam mais uma vez em polimento a parte amassada e instigam os outros a fazerem o mesmo. Parecem felizes. Os olhos brilham, apesar das sobrancelhas baixas de maledicência e os lábios apertados de contenção moral. Riem-se, um riso nervoso de excitação. Têm história para contar. História que não lhes faz mal, só aos outros. Uma boa história, então.

Explodir um dia

Passa por mim uma cara amassada cujo nome ainda é noite. O homem anda devagar, sonâmbulo, nem dá por mim e quase batemos de frente. Era a sua chance de ter acordado, mas eu me desviei a tempo de estender um pouco mais o seu sonho. Depois outra cara, a de uma senhora já com alguma idade indecifrável, mas de cabelo lavado e penteado curto, grisalho, como o céu por cima de nós. Abraça a bolsa rente ao corpo. Passos rápidos. Desvia-se de mim bem antes de nos cruzarmos. Estou como os dois: por fora, um homem e seu sonambulismo; por dentro, o andar rápido de uma pressa que não sei. Dei bom dia aos dois. Não responderam. Então entro numa confeitaria e peço um café, a ver se me reintegro. E uma Coca-Cola, para a devida explosão de um novo dia.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Pingos de chuva

De café em café, o frio parece ser mais. Venta. A franja do cabelo dança e perturba os olhos, que piscam, apertados, já confusos com os minúsculos pingos de chuva que espetam. A rua, turva. A noite espelhada de umidade. Os candeeiros, impávidos, reduzem o mundo a círculos de luz alaranjada, frações de certezas. Para lá, entre um café e outro, escuridão. E alguém, sem rosto, de guarda-chuva preto rente à cabeça, segue em silêncio pela estrada sem se importar com os sapatos e a calça encharcados. Vejo-o de costas. Vai a passo lento. E se parece tanto comigo que, se calhar, sou eu. Sou eu, sim. Estou imaginando que vem alguém atrás de mim e devo estar sentindo o incômodo de sempre, o de estar sendo observado. Preguiça de olhar para trás e confirmar a imaginação. O vento vai jogar com mais força a franja para dentro dos olhos e. Deixo-o. Ouve, eu que imagina, eu incomodado: viro ali naquele caminho à esquerda e deixo de ser a tua sombra. Mas sei que, se não olhares para trás, hei de te acompanhar, ainda que não, até a tua casa. Mas então seremos um só, ambos apenas na tua imaginação.

domingo, 15 de dezembro de 2013

Tardes de domingo

O domingo é o dia que me calhou para estar só. É bom. Ver a tarde em silêncio, a luz dourada que vai incendiando a paisagem, ouvir a música dos pássaros. O Farruco deitado sobre a faixa de sol que se estendeu no chão e que se vai arrastando, brincando com o passar do tempo. Ponho-me na varanda a ver o mundo, ouço-o. E conta-me imenso. Fala-me aos olhos numa linguagem que às vezes ouso traduzir. Não é bem uma tradução. É já o que eu entendi com os sentidos e depois se tornou meu e talvez não queria dizer exatamente o que a natureza me contou. Mas ainda assim foi o que ela mo revelou. Difícil dizer com ela. E ainda assim ouso dizer. Para tanto, eu tenho que tentar me fundir com a paisagem. Antes das palavras. Esquecer de mim como se eu nunca tivesse sido. Ser também por completo natureza. E só depois me lembrar. Depois, quando já nos separamos e eu e a natureza somos novamente duas maneiras diferentes de dizer, quase inconciliáveis. Como agora. Na minha vez, a vez das palavras.

Pequeno Bolo Rei

Ontem no Café Brasileira teve Bolo Rei do tamanho da minha vontade, que é grande mas passa rápido e por isso parece pequena. Comprei-o fiado, pior, em nome do povo lá de casa para que eles o pagassem no dia seguinte. Mas antes liguei-lhes: foi como se eu tivesse fechado uma venda terceirizada. Mas comi a minha parte para ter alguma culpa, a ver se sentia remorso. Não senti. Deve ter sido efeito do chá de menta que chamei para a mesa e que sempre me faz lembrar do deserto que eu vi de longe quando tinha oito anos e passei pelo Marrocos. O cheiro do vento que senti, sei-o até hoje. E então devo me ter distraído, não sei, e quando cheguei em casa o Bolo Rei estava ainda menor do que era na montra no café. A minha avó, quando abri a caixa e mostrei-lhe o bolo, concluiu muito bem: «Disseste que o bolo era pequeno, não que ele ia encolher no caminho até casa.» O que dizer? Não disse. Fiz aquela cara de não sei mas parece que a senhora me pegou. Ela riu. E abanou a mão no alto, como quem diz: fizeste bem.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Vejo o frio desde o nascimento

Eu vejo o frio. É branco, cor de névoa. É pesado, mantêm-se rente ao alcatrão. Eu o vou chutando pela estrada com meus pés, irmãos de gelo. Se me distraio, deslizo — sem querer, a gravidade, breve adversária. Vejo o frio. Eu abria a câmara frigorífica do açougue e uma densa nuvem de gelo escorregava e cercava-me as canelas. Treze ou quinze anos? não lembro. A imagem está guardada na eternidade. No eterno, o que importa é o que já passou. Estou diante da câmara frigorífica e uma nuvem de gelo desce e cerca minhas pernas. Olho. O piso de azulejos cor de ferrugem, as portas da câmara pintadas de branco com veios negros onde a tinta havia fracassado para a umidade, assim como os trincos de metal de contorno verde-úmido. Vontade de entrar, de me guardar lá dentro. Cheiro de carne arrefecida, os ganchos mais velhos de metal castanho e os novos de alumínio prateado dependurados, pernas de boi — cadáveres que sustentaram a minha infância. E quase que vou deslizando outra vez. Tropecei nas divagações e fui parar à berma da estrada: erva úmida e salpicada de gelo invisível, gelo que se vai solidificar até de manhã. Vejo o frio nascer. Vejo-o desde o meu nascimento. E o vou chutando com meus pés. O meu passado já é o futuro daquele do açougue, mas os cadáveres foram se acumulando e de qualquer forma já não caberiam naquela câmara frigorífica. Meus pés de gelo. A estrada de uma aldeia. Enfim, casa. Pensei que fosse pisar azulejos de ferrugem, mas não. O piso é outro. O trinco da porta é verde-seco. A vida foi se acumulando em veios por debaixo da tinta branca da minha pele. Quase que o meu deslize na recordação foi demais. Quase que não sei onde deveria estar. Culpa da minha breve adversária, a gravidade. A da memória. Ou desse meu viver tão cheio, que já estava quase transbordando, por distração, como se o viver só de hoje já não me bastasse.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Não me distraias, estrela cadente

Não adianta, estrela cadente! és bela, mas fugaz. Não vais conseguir tirar a minha atenção da Ursa Menor além do tempo da tua curta aparição. Ela é tão pequenina. A beleza que lhe vejo não cabe inteira nela e então cai aqui em baixo em brilho certeiro, apontado para os meus olhos. E se olho para o céu estrelado, é por ela que procuro primeiro. Então, e às vezes muitas vezes, surges. Entrevejo pelo canto de um olho um rabisco azul a desenhar o céu, como se um anjo, de brincadeira, fizesse faísca com o dedo no teto celeste. Incandescente, cruzas uma pequena extensão se vista aqui da Terra, mas não se vista do espaço. Consomes-te tão depressa; assim, como o riscar de um palito de fósforo que não chegou a acender. Então volto o meu olhar embevecido para aquela constelação, a Ursa Menor, com um sorriso guardado para dentro dos lábios, refletindo nas minhas retinas aquelas poucas estrelinhas e fazendo delas ainda mais belas por se duplicarem em mim. E os olhos, estrela cadente, deves saber, são as janelas do espírito. Têm de estar sempre bem abertas se o queremos manter bem arejado. Não me leves a mal. Vou sempre fazer um pedido para deixar bem claro a tua importância. Apesar de tudo, será que mo vais atender?

A construção do homem

Todos estes pensamentos inconclusos, sem razão aparente, sem que se perceba sequer o motivo de terem aparecido. Dúvidas? para ser humano, sim. O que um simples ato ou frase desencadeiam, imagina. E quão absurda é a vida, às vezes. E às vezes também inútil, cega de sentido, um tateio aqui e ali sem chegar a lugar nenhum apenas por não se ter decidido aonde. Quem já não o sentiu? tantas palavras gastas em determinada direção para serem desditas algumas curvas depois. Ou no choque com uma pedra bruta, que nos fere a língua afiada em argumentação. Um novo vocabulário para o destino que se definiu. Sim, é necessária a sua invenção. E que prazer uma mesma palavra para um novo sentido que lhe incumbimos. Um novo significado, virgem de decepção, de som puro como o primeiro choro do homem que acabou de nascer. Dói, mas ainda não o sabemos. Por isso, ainda não é bem dor. É o instinto a avisar que no futuro será mais. É carne. Só o saber é que nos fere a sério. E a doença incurável do homem, o pensamento. Essa lâmina que é diferente de todas as outras porque é afiada com o próprio uso. E que nos aflige a todos, cada um em sua profundidade. Cada qual com a sua ferida. Mas quanto mais cicatrizes, ainda assim, melhor. É sinal de que um homem vai sendo feito. E no entanto o homem é o único animal que ao ficar pronto deixa de o ser. Para sempre. Que mistério.